A Energia que Desprende do Físico

Transcorria o ano de 1989. Um domingo de outono, com um sol brando sem brisas numa temperatura agradável para inicio da tarde, pudera ser antes das treze horas. Estava de serviço nesse dia, de plantão até às 19 horas e até então nada ocorrera de diferente na cidade. Trafegava pelas ruas do centro sem movimento em direção a minha casa onde pretendia almoçar e depois levar minha esposa e deixa-la na casa da mãe. Acessei a rua do Mercado Municipal passando por trás da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e iniciei a descida para a chegar na rua de casa. Minutos já estacionei a viatura defronte minha residência. Quando desci um som alto de motor de motocicleta e avistei-a na rua contínua subindo em alta velocidade com seu piloto sem capacete. Dentro de um raciocínio rápido deduzi ser um problema aos policiais de trânsito e mal conseguiria alcançar saindo às pressas e no segundo, “esse merda de motoqueiro vai dar trabalho pra mim hoje”.

Almoçamos eu e esposa sossegadamente planejando a noite, a ida à missa e depois comermos um lanche e na volta um pouco de televisão. O que restava-nos a uma noite de domingo numa cidade de interior.

Saímos de casa quase às três da tarde levando-a comigo na viatura. Trivialmente conversávamos descendo a Rua Ladeira, um atalho íngreme de acesso a avenida onde meus sogros moravam quando já para entrar nessa observei algumas pessoas junto a uma moto caída e uma pessoa à beira da guia. Por força das circunstâncias, uma viatura preto e branca, é obrigatório a parada. Dispensei a esposa e atendi o acidente, podendo notar que realmente o motociclista era o que já havia notado guiando em velocidade. A moto aparentemente não tinha danos. O rapaz jazia com a cabeça entre a guia e o asfalto e notava-se muito sangue, inclusive do interior da orelha e do nariz, com uma respiração ofegante e espaços longos como buscando o ar. Coerentemente o mais sensato nos dias de hoje é acionar a emergência, o atendimento dos bombeiros, uma assistência especializada. Não. Na década de 80, em uma cidade pequena, não existe isso. Com ajuda e algumas curiosos coloquei a vítima no banco traseiro da viatura e em disparada com sirene acionada iniciei o caminho mais curto à Santa Casa de Misericórdia, fazendo praticamente todo o caminho em ruas em sentido contrário. O uso da sirene, da velocidade, da ostentação de um distintivo, faz a adrenalina ir a mil. Foram minutos de uma rotina quebrada nas pacatas ruas da cidadezinha até estacionar na entrada do atendimento de emergência, onde já desci pedindo uma maca e socorro. Rapidamente saíram enfermeiros e uma maca já pegando o rapaz e conduzindo pela entrada e acessando um corredor até uma sala onde em cima uma placa Emergência. Fiquei junto ao guichê de atendimento passando algumas informações e de soslaio observando todo esse movimento crendo ter feito o meu papel. Num lapso de segundos numa imagem estranha juro ter visto uma espécie de nuvem, uma névoa, saindo da sala onde haviam dado entrada com a vítima. Foram segundos transcorridos no que vi a imagem escura sem forma flutuando pelas frestas da porta ao que formou uma silhueta disforme e elevou-se dissipando ao que senti dentro de meu coração, meu pensamento, do meu raciocínio que acabara de ir à óbito aquele motociclista. A porta entreabriu e de lá uma enfermeira vindo em direção ao guichê.

-“ Acabou de falecer!”

Mesmo hoje, passados quase trinta anos a cena é bem nítida. Não houve medo, temor, nada que pudesse criar receio. Mesmo agora, no presente, voltando à realidade do meu cotidiano, sentado defronte ao PC escrevendo, olhando pela vidraça a noite limpa, um céu estrelado, as sombras dos galhos, tudo mergulhado em um silêncio sepulcral, não há nenhum medo de reviver aquela tarde e compreender o momento mágico que uma energia sairá do corpo físico dando a esse seu fim material. Quando entrei na sala para detalhar a vítima para um relatório sabendo que ali um corpo sem vida, foi como olhar para um pedaço de carne exposta na vitrine do açougue ao qual você compra para um churrasco, um almoço de domingo. Os sentimentos daquele momento relembram agora conscientemente foi igual ao ver meu Avô no caixão.

A Vida é celebrada qual quando temos cônscio poder de enxergar, ouvir, sentir, cheirar, falar, tocar, ao que não existe mais no momento que rompe esse tênue filamento de energia entre o Universo e a Matéria. Não, não que deixemos de ter existência, pelo contrário, essa é interminável num ciclo contínuo que somente vai mudar de mundo reiniciando tudo de novo.

Estou a mais de sessenta quilômetros da cidade em meio de uma mata natural e de preservação, sozinho em meio da noite, apenas com os barulhos do lugar. Sem mais nada. Quem sabe de minha existência nesse recanto? Só você que lê essas palavras... E saberá por toda uma eternidade perpetuando a própria descrevendo em si o sentimento de perceber na solidão o pensamento da morte e a eterna existência nesse Cosmo.

Não existe a Morte qual a vemos pelos olhos do mundo ou pelo nosso mais íntimo sentimento da perda material de tudo e todos. Ela é como a sede, a fome, o sono, a alegria, um só momento, um único momento. Após esse é só uma Energia, positiva ou negativa, boa ou má, branca ou negra. Não há mais o que escrever... Esgotado o assunto... Vou salvar o texto, desligar o PC e irei dar uma volta pelas trilhas na mata em volta da casa, com uma lanterna para sentir a paz do Universo e pensar nesse mistério chamado Vida. Irei até aquelas pedras à beira do riacho para ouvir o som da água corrente e o som da noite, sentir essa Energia que habita em nossa volta e talvez observar algum vulto de fantasma.

Oliveira de Santana
Enviado por Oliveira de Santana em 24/04/2019
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