Das Dores de Maria.
“Os olhos deitam dor sobre o horizonte;
cerram-se as janelas... as bocas.
Na rua erma, vai e vem o nada.
A noite cai sobre a cuia emborcada...”
Antônio Elias de França
Seu nome era Maria José, mas bem que poderia ser somente José. Tinha outra irmã que de batismo herdou as dores, Maria das Dores. Confinadas nos fins de uma propriedade rural desde crianças, a única diferença dos irmãos homens talvez fosse mesmo o sexo, que por um capricho irônico do destino, nasceu em forma de rasgo entre as pernas. Quanto as faceirices femininas nunca se pode observar nada. Viviam, aquelas duas, da lida rural, a se esquecerem de que deveria haver algum sentido maior para vida. De um tempo em que o sexo era tabu entre moças, é possível que sequer tenham elas gozado o prazer da masturbação. Ou quem sabe, se escondidas em seus quartos, em devaneios, imaginassem o falo dos cavalos e touros que tão 'desavergonhadamante' gozavam suas éguas e vacas sem nenhum pudor daqueles olhos virgens de qualquer júbilo do prazer. Quando criança eu as olhava com olhos de incompreensão. De seus sofrimentos, nada pensava. Não compreendia os muitos silêncios a se alongarem em suas almas. Morávamos próximo ao matadouro donde todos os dias elas levavam bois para serem abatidos. Ao pé da porta de minha casa eu as via passar e impostarem a voz numa toada de “ Ê Boi, ê boi...” Algumas vezes, talvez pressentindo o destino que as esperava logo após cruzarem àquela estradinha de terra onde ficava o matadouro, uma rês ou outra costumava empacar, e então eu podia observá-las bem de pertinho. Assim, fui incontáveis vezes espectadora daquela efusão de resistências, onde o boi relutava em aceitar a morte e aquelas que os subjugavam, muitas vezes, saiam com algum tipo de ferimento físico, contudo, sem jamais expor os lanhos em suas almas. Não gostava de ver o olhar do boi, tinha a impressão que me pedia socorro. Do mesmo modo, nunca tive a coragem necessária para visitar o pestanejar daquelas. No entanto, apesar daquele duelo natural pela sobrevivência, o animal era vencido e cumpria sua sina. Embora eu soubesse que aquele pobre iria morrer, e ficasse por alguns momentos imaginado para onde iria sua alma, a morte e o sofrimento alheio, aquele tempo, não tinha o peso e a significância do agora. Muitas vezes jantei aquela agonia moída, sem me dar, que juntos aos temperos saborosos de minha mãe, eu degustava esperanças ruminadas. Era uma gente que mesmo jovem na idade, pelas carrancas, tinham a alma já encarquilhada e pareciam mais envelhecidos. Anos a fio aquela gente confinada àquela lida: aboio, ordenha, plantar e cortar capim. Era uma família grande, que os anos com seus açoites foi levando um a um. Alguns conseguiram o feito de casar e seguiram outras veredas da vida. Outros foram tocados pela mão esgueirada da inconveniente. Para aquelas duas, as cirandas entoadas quando crianças : “ O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que Tereza deu a mão...” Parecia muito mais uma cronologia dos adeus eternos em suas vidas. Destino, agonia... Quis assim um além que Maria e Das dores nem morressem nem vivessem, apenas permanecessem sobre o chão a carpir essas desventuras de enterrar. Quanto crepitar de velas, quanto cheiro de morte. Abortos de sonhos e planos foram remexidos junto com esterco das vacas. Quantos silêncios, vontades de mãos nos seios, foram veladas ao ordenhar as vacas imaginando talvez toques sobre os seus. Nesses sepulcros em que ambas imergiram a vida toda, as vi nessa tarde no alpendre saudoso de risadas. Duas velhas, rosto lívido e solitário. O amor não veio e a morte ainda tarda.