VIRANDO A MESA
Andreia tem 15 anos, estuda na 1ª série do Ensino Médio e não está feliz com o tipo de vida que leva e reclama, falando sozinha, como geralmente faz, quando precisa desabafar:
-Droga, não aguento mais esta vida, é todo mundo pegando no meu pé, me proibindo de tudo, me dizendo o que fazer, não me deixam pensar sozinha, não posso decidir nada. Droga! Nem parece que sou livre. Que liberdade é esta? Que vida é esta? Droga! Hora dessas, dou um jeito nisso tudo, eles vão ver, depois vão ficar chorando...
Neste momento, o pai entra, dá com a filha e vai logo despejando em tom grave e autoritário:
- Tu estás proibida de sair à noite, ainda mais com aquele vagabundo com quem estás...ficando. Ora essa, FICANDO! No meu tempo a gente namorava e tudo com muito respeito. Agora é essa pouca vergonha! Tua mãe disse que tens que ir ao médico. Anda, te arruma e vai!
Andreia vai ao médico de má vontade, reclamando, acha que não está doente. Não está sentindo nada de mais para que um ginecologista se meta na sua vida. No consultório, leva uma bronca por não ter ido antes e por não ter feito os exames solicitados há um mês.
Andreia sai do consultório e se encontra com uma amiga:
- Helena! Que bom que te encontrei! Estava mesmo precisando falar com uma boa amiga como tu.
- Oi, Andreia! O que aconteceu contigo? Estás esquisita.
- É, não aguento mais esta vida cheia de homens mandões. Não aguento mais este mundo machista. Parece que tudo o que é homem inventou de me dizer o que devo e o que não devo fazer. Em casa, meu pai berra, manda, proíbe. Sou uma escrava. Meu irmão mais velho berra, manda. É um chato, um grosso. O médico manda. O dentista manda. Os professores, maioria homem, mandam. São uns chatos. Até o padre. Imagina que esses dias fui falar com ele e sabes o que foi que ele me disse?
- O que foi?
“Tens que ter paciência, minha filha, os pais são assim mesmo. Se são um pouco severos, é porque amam demais seus filhos, querem o bem deles. E os filhos precisam obedecer sempre aos pais. Esse é um mandamento sagrado, de Deus. Tenha paciência com seu pai, minha filha. Seu irmão também quer o seu bem, ele já tem mais experiência de vida e só quer lhe orientar. Assim também o médico, os professores. ” Que droga, Helena, não dá mais! Qualquer dia faço uma besteira. Fala sério, né!
- Andreia, minha amiga, dá um tempo, ignora, daqui a pouco isso passa, garanto. Comigo também foi assim e hoje minha relação com meu pai e com meu irmão é uma beleza. Contigo vai ser assim também. É só dares um tempinho.
- Nunca! Não vou dar tempinho nenhum. Não conheces meu pai, nem o grosso do meu irmão. Eles não vão mudar nunca. Estás falando igual ao padre. Fala sério, né!
Para livrar-se de tantos problemas; para fugir do mundo machista que lhe torturava, Andreia se casa; melhor, vai morar com Nivaldo, seu namorado e espera, enfim, ter vida própria, respirar aliviada, fazer o que acha certo, o que lhe der na telha, sem ninguém dizendo “faça isso, faça aquilo, não faça isso, não faça aquilo”. Chega! Vai ser feliz, livre! Será mesmo, Andreia? Será que encontrarás na rotina da vida a dois a paz que procuras, a felicidade? Estarás, mesmo, livre das correntes machistas? A vida com a qual sonhas estará com certeza no convívio com Nivaldo? Olha lá o que vais fazer, garotinha!
O tempo passa...
Andreia aparece de avental, na cozinha, fazendo comida. Um bebê chora no quarto. Ela limpa as mãos no avental e sai correndo. O nenê se acalma. Ela volta. Alguma coisa está queimando no fogão. “Ih, o arroz! ” Ela mete a mão, queima os dedos e xinga. Fala consigo mesma: “Droga, já é quase meio dia e ainda tenho o tanque cheio de roupa.
O marido chega perguntando, sem muitas gentilezas:
- O almoço está pronto? Estou morrendo de fome.
- Está quase pronto, ela responde com ar de desânimo. Senta à mesa que já arrumo tudo.
Ele se senta e espera. Ela põe a comida na mesa e serve o prato do marido, que ele não faz isso, “mulher é para essas coisas”, diz e experimenta a comida. Faz cara de nojo e dá uma bronca:
- Porcaria! Esta comida está uma droga! O arroz está queimado e sem sal, como sempre. Será que vais ficar velha e não aprendes a cozinhar? Meu Deus, para que serves? Vou almoçar fora. Espero que amanhã isso não se repita!
Nivaldo levanta-se e sai bufando de raiva. Ela não diz nada, mas fica chorando em silêncio.
O tempo se escoa rápido e Andreia, dona-de-casa que é, passa seus dias na lida doméstica. Nunca mais teve tempo para sair de casa, nem para um passeiozinho à toa. Nivaldo, há muito que não sai mais com ela para nada. Nem ao salão de beleza ela foi mais. Já não se lembra do que seja cinema. Seus estudos foram interrompidos quando foi morar com Nivaldo, porque ele era ciumento e não a deixava sair sozinha. Sua amiga de infância nunca mais apareceu. Seu bebê está com seis meses e ela grávida de novo.
Os anos vão passando, as cenas domésticas de Andreia na cozinha se sucedem. Nivaldo sempre reclamando de tudo, não liga para ela. Já tem quatro filhos. Seus cabelos vivem amarfanhados, as unhas sempre descuidadas. Ela toda é malcuidada, malvestida; rugas precoces, gorda, barriguda. Chora e fala sozinha enquanto faz comida, enquanto lava roupa, enquanto arruma a casa: “Meu Deus, no que me transformei? Quem sou eu? Onde está aquela Andreia que queria mudar de vida? É claro que mudei de vida, e como mudei! Isto não é vida, é um cativeiro. Sou uma escrava. Pior ainda, nem sei quem sou. Tenho até vontade de fazer uma besteira...mas tenho as crianças...Droga! Um dia dou o grito da liberdade. Uma hora dessas ponho mesmo fim nisto tudo. Uma hora dessas, faço como Helena me aconselhou: arrumo um emprego e dou um basta no Nivaldo. Ele vai ver! Afinal de contas, as mulheres têm ou não têm os mesmos direitos que os homens? Se têm, por que, então, estou me acabando deste jeito, enquanto ele vive no bem bom, bem arrumadinho, cheio de amigos e até de amigas? Será que sou pior do que ele? Tenho que viver como uma escrava, sempre obedecendo, sempre só em casa, criando como uma porca, engordando como uma porca, cada dia mais barriguda, mais velha e mais feia? Será que é para isso que a mulher foi feita? Não, não e não! É claro que não! Um dia ponho um fim nisso tudo. Juro!
No auge da angústia, Andreia encontra forças para ir à igreja se aconselhar com o padre:
- Padre, não aguento mais!
E conta toda a sua vida ao padre, que a aconselha:
-Minha filha, a mulher tem a sublime missão de zelar pela casa, pelos filhos e pelo marido. Seu marido lhe maltrata? Bate em você? Tem-lhe faltado alguma coisa em casa? Então, minha filha, tenha paciência, a vida é boa como é. Você está cheia de amarguras e isso não é bom, faz mal para sua saúde e é pecado. Seu marido trabalha duro para sustentar a casa e olha que é só ele quem trabalha. Agora vá esperar seu marido, procure ficar calma, faça uma oração e que Deus lhe abençoe!
Andreia volta para casa mais angustiada ainda e espera Nivaldo, que não demora. Ele entra, dirige-lhe palavras indelicadas e se encaminha para o banheiro, de onde grita pouco depois:
- Andreia, traz meu pijama, minha cueca e meus chinelos.
Ela, absorvida em seus pensamentos, não ouve e ele volta a gritar:
- Andreiaaa! Será que estás ficando surda, depois de velha? Anda, traz o que te mandei.
Com frequência, Nivaldo leva um amigo para casa e ordena à esposa que lhes faça comida. Fala para o amigo que não suporta mais aquele
bagulho, sempre cheirando à gordura e à cebola.
Um dia, Helena, a amiga de infância, aparece.
- Oi, Andreia, quanto tempo!
Ao ver a amiga, Andreia começa a chorar e é chorando que fala:
- Helena, veio ver minha desgraça? Olha só como estou! Um bagulho, como diz Nivaldo.
- Minha amiga, vem, me abraça e chora, que faz bem, diz Helena, aproximando-se da amiga, de braços abertos.
As duas se abraçam e choram.
- Helena, não aguento mais, preciso fazer alguma coisa com urgência, se não enlouqueço. Por favor, amiga, me ajuda!
- Claro, amiga, vamos encontrar uma saída. Pensemos com calma, que daremos um jeito; afinal, não existe problema sem solução, nem tempo feio que dure para sempre. Sabes, amiga, acho que és um pouco culpada por esta situação, porque sempre somos um pouco culpadas por aquilo que somos. As conseqüências de nossas escolhas sempre acabam nos atingindo, de um jeito ou de outro. Mas deixa isso para lá, porque todo tempo é tempo de mudar, tudo depende de nós mesmas, de nossa força de vontade e persistência. Tu vais voltar a sorrir, a ser feliz, a ser bonita. Queres? Então vamos à luta. Para começares de fato a mudar, vamos primeiro comprar roupas bonitas, depois iremos a um salão de beleza, depois te matricular em uma academia de ginástica e por fim arrumar-te um emprego, para que possas, então, soltar o brado de liberdade. Que tal?
Andreia concorda, a princípio temerosa, mas depois com esperança e as duas saem, dispostas a mudar o jogo.
Quando Nivaldo chegou, à noite, encontrou outra Andreia, que o esperava à porta. Ele mal pôs um pé para dentro, ela o atacou como um furacão, puxando-lhe e o empurrando para uma cadeira, onde ele caiu estupefato, de olhos arregalados, olhando-a espantado, sem entender nada. Ela disparou tudo o que lhe havia entalado na garganta, no coração, na alma:
- Nada de banheiro. Senta-te aí, que vamos conversar seriamente, de uma vez por todas.
Ela não lhe deu tempo nem para que esboçasse o menor sinal de reação e foi dizendo:
- Acabou! Nunca mais, ouviste, “meu senhor marido”, vou ser tua escrava! Não sou mais tua propriedade, entendeste? De hoje em diante, nesta casa, direitos iguais. Deixei de ser boba, estás ouvindo? Olha para minhas mãos! Estás vendo meus cabelos? E estas roupas! São novas, bonitas, estás vendo? Esta barriga (Andreia bate na barriga), vou perder, vou voltar a ser bonita, a ser gente, vou viver, ser feliz. Amanhã mesmo começo a fazer ginástica, já me inscrevi. Queres mais? Amanhã começo a trabalhar fora, já arrumei um emprego. Estás ouvindo? Vou tra-ba-lhar fooo-raa! O tempo de servidão acabou! Lavar louça? Fazer comida? Engravidar? Lavar tuas cuecas cagadas? Nunca mais! De hoje em diante só faço qualquer coisa nesta casa se tu fizeres também, se for tudo divididinho, de igual por igual, ou então arrumamos alguém que faça, uma doméstica.
Ele fala, afinal e até com humildade:
- Andreia, mas que bicho te mordeu? Não estás contente com a vida que levas? Tua vida não é boa? Por acaso te bati algum dia? Algum dia deixei faltar comida em casa? Não te dou sempre as roupas de que precisas? Nunca pensei que fosses minha escrava. Nunca quis ser teu dono. Nunca reclamaste de nada, sempre achaste tudo certo. O que queres agora?
Ela fica ainda mais furiosa:
- É só para isso que queres uma mulher? És mesmo um ser humano muito atrasado! Nunca pensaste, nem por um momento, que também sou gente, que tenho dignidade, que sofro e que tenho o direito de ser feliz, de ser amada? Tu não casaste para ter uma esposa, uma companheira, com a qual possas dividir sonhos e projetos, mas uma empregada doméstica! Mas agora chega! Quero mais que simplesmente um lugar para morar, quero mais que comida, arroz com feijão e algumas roupas vulgares! Vou ser eu mesma, entendeste? E nem penses em me impedir, que não me dás mais ordens!
- Claro, claro, eu concordo, tens razão. Eu não sabia que não estavas satisfeita com nosso relacionamento; afinal, nunca reclamaste, nunca brigamos de verdade. Sinto muito. Vamos mudar, se é isso que queres. Vamos mudar tudo. Olha, mesmo assim... brabinha, estás muito bonita.
Andreia resgatou sua dignidade. É ela mesma outra vez. Está trabalhando fora, tem um bom emprego, ganhando seu dinheirinho, fazendo amizades, fazendo ginástica. Está vivendo... voltou a ser bonita. Perdeu as gordurinhas indesejáveis e não é mais obesa. Remoçou, e o mais incrível: Nivaldo está adorando, traz-lhe flores e não cansa de dizer: “Como estás linda”!
A família está sempre reunida e feliz. Nivaldo não cansa de elogiar a beleza da esposa; nunca esquece das datas especiais, quando lhe oferece presentes.
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A vitória de Andreia foi mais fácil do que ela esperava. Ela só tinha que lutar para ser feliz e não sabia. A felicidade esteve sempre ao alcance de suas mãos.
Assim como Andreia venceu seus problemas, todas as mulheres, em situações semelhantes, podem vencer, todas podem virar a mesa, de um jeito ou de outro.
A felicidade não cai do céu, é uma conquista diária. As pessoas constroem suas próprias desgraças, de acordo com suas interações sociais e passam a vida lamentando por isso. Andreia permitiu que tudo acontecesse da forma que aconteceu, porque poderia ter mostrado ao marido, desde o início, que estavam começando por um caminho tortuoso e se ele não quisesse mesmo aceitar, ela tinha a obrigação com ela mesma de ser feliz, de buscar outro caminho, de construir uma nova história. Os casamentos são construções; assim, se não receberem os cuidados devidos, se deterioram e podem desabar e se desabarem, ainda é possível a reconstrução, como Andreia fez. No entanto, o que, via de regra, acontece, é que essas construções não recebem os cuidados devidos e quando desmoronam, a família inteira sofre e se o casal não fizer o que precisa ser feito, ficam vivendo nos escombros, como baratas e ratos; a vida vira uma desgraça. Andreia viveu longo tempo um relacionamento infeliz, ela já começou por viver nos escombros e foi aceitando tudo passivamente, por isso sofreu as conseqüências; porém aprendeu e teve forças para mudar, para iniciar a reconstrução do relacionamento.
As mudanças, às vezes, nem sempre harmoniosas, são sempre necessárias e possíveis.