Kombi 76
É uma terça-feira inibida, a Kombi 76 sem bancos balança, sacoleja por entre ruas de asfalto ruim. Dois meninos sentados em pilhas dos tabloides de Nova Fé procuram sustentar a cabeça no menor movimento. O ar que respiram tem cheiro de papel gasto, as frestas abertas do veículo ressuscitado do reino das latas velhas, permitem o sopro de ar que move as pontas dos jornalecos de promoções. Breno vagueia bem perto, limitado por origem, pensa na mãe e no quarto irmão, recém-nascido, magro, quase roxo. Sandro apoia o queixo, deseja comer uma coxinha na padaria, talvez pediria ao dono, saiu de casa sem café da manhã, a avó xingando a vida, adorando o amargo das horas longas do dia.
- Ei garotos – berrou o motorista de barba malfeita e boné azul. Nada de jogar por aí, tem que entrega casa por casa.
Às 5:45h Breno acorda molhado, com quatorze anos os sonhos são picantes, possuem o fogo da vida e a brandura da inocência. Corre para o banho, banheiro sem porta, parede sem reboco, água sem calor, sabonete sem espuma, o cabelo negro e liso sem shampoo, toalha sem exclusividade. Mesmo com eliminação do sêmen durante a madrugada, quer se masturbar. Desiste, a mãe logo levantará para mijar ao seu lado, e como de costume, puxar a cordinha da caixa d’água da descarga:
- Anda logo menino! Água tá cara. Teu irmão também tem que tomar banho, cacou-se todo, to esquentado água pra bunda do moleque. Pedro Henrique também tá acordado, ainda bem João Manuel dorme, aquele sim, aquele sim é um bom menino. O que tá me olhando com esta cara? Te vejo desde criança, ora, é só o que me faltava, vergonha da própria mãe, tá com uns pelos no saco e já tem vergonha da mãe.
Sandro tinha água quente, o pai fez gato direto do poste de luz. A água escorria pelo cano rudimentar, outro gato, vindo direto da rua. Um jato quente, forte, melhor que de hotel estrelado, queimava o lombo do rapaz de sonhos picantes acordado, os olhos vulgares caiam em cima da menina e ali, ardia como nos quinze deve arder. O sabonete a avó ganhou da amiga vizinha, que fazia para vender. O pai acordou antes dele, prometeu a avó buscar o pão, até a hora da saída do filho para o trabalho, não tinha voltado:
- Come na rua moleque! Tenho culpa do teu pai se enfiar a esta hora no boteco. Que desgraça de bar abre esta hora? Quero que pegue teu dinheiro hoje e compre ovo antes de voltar para casa, me apareça aqui sem eles que te dou uma surra, moleque sem vergonha.
A Kombi 76, parecia nunca ter sido lavada, sacolejava os garotos absortos. Idade para apanhar ele não tem mais, era isto que o absorvia e em seguida a coxinha. Quem aquela velha pensa que é, nem minha mãe é, compro tudo em coxinha e coca, o dinheiro é meu, sou eu que trabalho, eu que ponho comida naquela casa, todo santo dia tenho que levar alguma coisa.
O balançar também atrapalha os pensamentos de Breno. Fralda, leite em pó, mais fralda. A mãe arrumara outro filho, sabia quem era o pai, porém por vaidade e orgulho, escondia de todos a identidade do reprodutor. Pelo menos teria a escola a tarde, chegaria mais cedo para pegar o lanche de entrada, sabia que o almoço ficaria só para o bebê, correndo das tetas da parideira.
- Olha! Semana passada o dono do mercado, o dono mesmo, não o gerente, não o administrador, o dono em pessoa, descobriu que tinha uns garotos jogando fora o jornal das promoção e despediu os garoto! To falando sério, pensa! Despediu. Só entre nós – torce a cabeça para trás, mantendo a visão no trânsito – fiquei sabendo – sussurra – que mandou o segurança dar uma coça nos garotos, nem no Nova Fé eles estram mais, proibido de fazer compra lá. Sem jogar os jornal fora, isso é dinheiro, custa caro.
Sandro balança a cabeça, parece concordar, Breno ignora.
- Ei? Como são bons garotos, hoje vai fazer o bairro do dono, vão lá para o Nova Fé. Já te contei que o dono é dono de quase todas as casas de lá. Nova Fé era uma fazenda, meu avô chegou a trabalhar lá, o dono herdou tudo, depois loteou. Com o dinheiro, abriu a rede de mercados. Oh homem! Investiu na cidade, pensou em dar trabalho pra toda esta gente, inclusive os dois. A fazenda era enorme, pode lotear bem, só quem tinha dinheiro alto na época pode comprar, também! Com aquele tamanho de terrenos! Se deram bem, vão entregar os jornal do Nova Fé no Nova Fé. Por isto, fica esperto! Nada de jogar fora! O dono pode ver, e aí sobra até para mim. Certo, garotos? Aqui, podem descer. Cada um de um lado. Vai, vai, sem preguiça. Tá pesado coisa nenhuma. Vamo, vamo!
Breno e Sandro colocam duas sacolas pesadas com alça de tecido de cada lado e descem no Nova Fé. Bairro chique, casas que beiram um milhão. Sandro ficava feliz, achava-se útil, admirava que rico gostasse de promoção. Com ruas planas, árvores arredondas, calçadas pavimentadas, muros emparelhados, três fios de alta tensão em cima de cada beiral, telhados altos, caixas do correio de boa procedência. Cada um num canto, calados, silenciados pela pressão dos passos, depositam nas residências a Nova Fé.
Comprida e larga rua, habitada apenas por eles, nem carro passa. Aquela hora, Breno se pergunta, se todos se foram, se estão no trabalho, na escola, ou se dormem. No final da via, se encontram, Sandro quer ir para direita e Breno esquerda, porém a ordem é para irem juntos:
- A carne tá na promoção...
- Como sabe?
- Tô vendo aqui, idiota!
- Idiota é você, que nem sabe ler.
Breno golpeia a animação de Sandro, quinze anos, adora olhar as pernas das meninas, trabalhador e analfabeto.
- Ver a foto, o preço eu sei! Eu sei é ler as coisas...
- É tonto mesmo, as coisas nem se pode ler. O que se lê é as palavras.
- Mas os número também se lê – a sobrancelha grossa se levanta naquele rosto redondo de pele escura bronzeada.
- Sandro, ce é besta, número a gente vê, foto a gente vê, o que se lê são as letra, a sílaba, a palavra. Ce diz que lê, até pode ser esta bosta de jornal do Nova Fé, mas livro que é bom nada, nem na escola vai.
- Breno, vai se catar, cuidar da tua vida.
- Deixa eu ver a promoção.
Ambos sentam debaixo da sombra de uma destas árvores podadas. Cada qual com o tabloide. Abrem nas promoções, carne, leite, manteiga, iogurtes, laranja, batata, sabão em pó, amaciante, ao chegar no desodorante, se entreolham, cheiram as axilas, fingem não feder. Suco, cerveja, tomate, berinjela, peixe. Sandro diz certinho o nome de cada item, e para mostrar ao companheiro que era sabido, nomeava o produto em alta voz e em seguida o preço. Arroz, feijão e frango. Breno é solidário com a ingenuidade de Sandro. Na ponta da rua que cruza a esquina, moça bonita desponta, dezessete? cabelos louros e presos, com calça colocada, tênis caro e camiseta antibactéria, caminha, ensaia uma corrida. Sandro abandona o Nova Fé, sente o pênis duro, encara despudorado a garota.
- Por isso que gosto deste bairro - ela se aproxima.
Breno também repara, o que assombra o menino é a brancura da pele, como pode andar no sol, e ainda ser branca? Repara a pele rubra dos antebraços, tem vontade de mostrar a bunda, é branco como ela. A garota, por proteção, ignora a existência dos delinquentes que habitam seu recanto. Ajeita o fone no ouvido, desta vez corre. Sandro diz uma besteira, Breno sorri.
- Voltando pras promoção, já que a mocinha nem quer nós.
O garoto analfabeto depara-se com um item no Nova Fé que nunca tinha visto antes. Era uma fruta, escamada, cor de rosa. Um rompante aperta o peito, Breno o encara, triunfará sobre o colega. A altivez do garoto de rosto fino, corpo esguio e alto toma a personalidade. Sabe que é pobre, entretanto branco, apesar da mutilação solar. Reconhece que é mais alto, mais bonito, mais atraente, e certamente tem genital maior, só resta a humilhação de ser mais sabido. Sandro, parrudo, coça o nariz e evita tirar os olhos do Nova Fé. A angustia o toma, gostaria de externa-la, dizer ao colega, ei seu besta, nem ligo se não sei ler, sei ver as imagens e o número, sabendo disto, posso comprar o que quiser, a vida é comprar, o que me deixa de cabeça quente é saber se está barato mesmo! Breno puxa o tabloide da mão de Sandro, deixa eu ver. Lê o nome da fruta:
- Viu seu burro, isto é ler.
Sandro, enquanto o rapaz magro soletrava letra por letra para ler o nome da coisa, enrola uns dez Nova Fé, forma um taco, ao ser comparado com animal, desfere violentamente um golpe na cara de Breno.
- Filho da puta! Por que fez isto?
- Pra parar de ser besta! Breno, cê é o cara mais besta que conheço. Tua mãe dá pros cara aí, arruma o filho e você que sustenta...
Antes de terminar, Breno gruda o pescoço de Sandro e esmurra-lhe a cara, cala a boca! Quem é você para dizer estas coisas? Toma! Seu burro! Sandro cai, só que é mais forte, levanta, avança feito rinoceronte, imprime toda força sobre o corpo magro, espreme Breno na parede. Vai tomar no teu cu! Sustenta vagabundo! Sustenta vagabundo você! Breno consegue escapar, pega a bolça de tecido pela alça, pesada, lança sobre Sandro, Nova Fé espalha pela calçada limpa.
O vento sopra a Nova Fé, as folhas coloridas são varridas para longe, os garotos brigam, pássaros calmamente voam sem se importar com os garotos lá em baixo. Os pássaros acham graça, brigam como adultos, com socos, posição de boxeador, gingado, o mais gordinho é forte mas o alto leva mais jeito, ganhará a parada. O vento sopra, as árvores dançam, no ângulo de quarenta e cinco graus, ondulam, torcem para que a briga termine em paz. Parece que um morde o tornozelo. Tornozelo? Nova Fé é espalhada por Nova Fé.
É Sandro quem vê, de longe, dois guardas, meio seguranças na verdade, vindo na direção deles, acompanhado por um idoso gordo e de roupão. Sandro alerta o oponente, que também se vê em perigo. Sob ação do instinto, dão trégua aos pontapés e põe se a correr. Sandro, miúdo, dá passos curtos e explosivos, Breno têm passadas longas e resistentes. Sorriem, zombam dos que ficam para trás, pegam o Nova Fé espalhados e rasgam em pleno ar. Os pássaros, já longe, dão meia volta, parecem aplaudir de asas abertas a corrida em meio a fuga. Um abacateiro, o único preservado da época da fazenda, lança a folhagem ao céu, numa espécie de agradecimento, vê gente de verdade, como se via setenta anos atrás. Parecem correr entre pastagem, o mato verde nem se incomoda, chutam o cupim seco, centenas de cupins dentro de pequenos furos na terra, dão boas-vindas aos garotos, que sem entender, desfrutam da liberdade:
- Sandro, é o dono! É o dono!
- Breno, é o dono! Acho que a menina devia ser algo do dono! Foi ela que caguetou a gente.
- Sandro, vamos correr do dono! Já que estamos ferrados, vamos correr.
Alegres, correm e fazem questão de rasgar toda Nova Fé que encontram pelo percurso. Deixam o bairro nobre, o asfalto acaba, as ruas têm chão batido, as casas sem muro, as portas abertas, os únicos fios que circundam as casas são os arames repletos por lençóis, calças velhas e outras peças do vestuário. Cansados, recobram o fôlego na pequena praça. O campinho está vazio, o bebedouro funciona. Vagam pelos canteiros de grama queimada dois funcionários da prefeitura. Os meninos sentam no banco de cimento. Breno sai para beber água, quando volta é a vez de Sandro.
A alegria da união, ficou na fuga. Sandro balança a perna, Breno ouve o choro do irmão bebê.
- Que bairro é esse, Breno?
- Sei lá! Ei, moça? Que bairro é esse? – pergunta para a gari.
- Boa Esperança.
- Verdade, Breno! Aqui é o Boa Esperança, já ouvi dizer. Breno?
- Que foi?
- Será que o dono vai vim atrás da gente?
- É provável. Como acha que ficou rico todo este tempo?
- Como?
- Socando os outros, o dono sempre soca os outros.
Demoram para falar, o silêncio toma conta, só ouvem o som da varrição que por um instante para. O casal de gari apanha um tabloide, é Nova Fé, comentam sobre as promoções. Sandro repara na comparação de preços que fazem e o nome do fruto misterioso é lido, se enrola feito piolho de cobra a ser tocado. Breno sente a tristeza do amigo. Sentado no encosto do banco, num posto mais elevado consola:
- Sandro, fica assim não. Ver as imagens e saber os números é ler, só tava zuando.
- É nada, Breno. Ler é saber o que as letras dizem quando estão juntas, coisa que eu não sei, minha cabeça é oca.
Breno desce, senta ao lado de Sandro, ei cara, tem que ter esperança, fé nas coisas. Vem, vem cá que vou te ensinar a ler...
- Agora?
- É, agora! Ei moça, eu de novo. Pode me emprestar Nova Fé?
- Breno, posso depois te pagar uma coxinha?