A dança da juventude
Maria gostava de dançar. A juventude nos bailes da roça, o tio sanfoneiro, os galpões e as serestas deixaram marcados em seu coração o chamado da música a movimentar o corpo. O amor pelo ritmo da música deixou um traçado de passos em sua alma. Mesmo que durante muito tempo, não dançasse.
Era uma época dura. Mas não importava. Mesmo a vida adulta chegando, mesmo as responsabilidades do trabalho, casamento e filhos, mesmo a exigência dos tempos bicudos não apagavam o traçado dos passos em sua alma. Bastava ver um filme onde os passos se desenhassem com luz na tela do cinema. Bastava ver um programa de televisão onde os casais competiam com a habilidade de seus passos cuidadosamente ensaiados. Bastava testemunhar a dança para que seu coração se distraísse um pouco da falta de ritmo da vida cotidiana.
Ainda vieram as tragédias. Pobreza. Viuvez. Cinco filhos pra criar. Nada de música, nada de dança. Jovem ainda, muito trabalho. Trabalho para sustentar filhos, trabalho para não enlouquecer. Trabalho para seguir vivendo e empurrando todo o peso das obrigações que se acumulavam. E a música se resumia a um assovio aqui ou a um rádio ali. A dança não estava morta, mas em coma. E por um bom tempo.
Veio novo marido. Ajuda para terminar de criar os filhos. Educar a turma toda. Veio mais luta, veio mais vida. Filhos criados, quase todos adultos, alguns já trabalhando, veio temporão. Veio caçula, já quase aos quarenta. E mesmo sem dança, há que se rebolar muito pra driblar os problemas. É sogro doente, é filho doente é marido doente. É três hospitais por semana. É um problema atrás do outro, é o padre na páscoa que isenta Maria da penitência, porque sabe bem o que ela passa na vida. Maria tem que achar graça disso. Sua vida é uma penitência.
Aí Maria tem que virar pai e mãe. Aí Maria deixa de ser dona de casa e vai trabalhar. Maria descobre infidelidade do segundo marido e termina casamento. Maria fica mais forte. Maria bate no peito, se vira como pode e não deve nada a ninguém. Maria já está com cinquenta.
E Maria volta a dançar. Baile. Baile dos aposentados. Baile dos coroas. Seresta, gafieira. Maria encontra amigas e vizinhas, todas separadas ou viúvas. Maria se identifica, se reconhece em tantas histórias às vezes tão diferentes, mas tantas vezes tão semelhantes. Maria não chora, porque é forte, mas Maria se emociona. Maria dança. Quando já não devia mais nada pra ninguém, quando se libertou da ilusão das satisfações a dar, os passos gravados na alma tornaram a servir de inspiração. E Maria não só dançou, como fez aulas de dança. Participou de concursos de dança. Ganhou alguns. Faixa e coroa. Amizades e irmandade. Maria já estava velha? Para alguns. Mas Maria renasceu. Ganhou qualidade de vida. Maria descobriu toda uma cidade que dançava. Uma cidade que praticava toda semana aqueles passos que a alma guardara desde a juventude. Passos que atravessaram muitas vidas difíceis, para chegar a termo numa diversão mesmo que tardia.
Maria voltava do baile naqueles invernos frios sem casaco, de tanto calor por dançar. Voltava, chegava em casa e fazia com que o calor da sua dança aquecesse o coração de todos que a queriam bem. A cidade de Maria dançava assim: nos encontros de jovens da terceira idade. Jovens que como ela, dançavam até que as dores da vida deixassem ao menos por algumas horas de fazer sentido. Era nesse momento que todos sentiam-se jovens novamente.