BELMIRO E O VELHO DA CADEIRA DE RODAS
Existem certos acontecimentos que acabam marcando na nossa vida. Alguns marcam pela tragédia acontecida que, muitas vezes nos comove, até ante a nossa impotência para ajudar ou resolver os problemas. Outros que, apesar de também terem certa dose de trágicos, também marcam por poderem ser classificados como tragicomédia. É o que muita gente diz: “Seria cômico se não fosse trágico!”
O que passo a relatar se deu na cidade onde fui criado, a querida Jaboticabal, no interior do Estado de São Paulo, nos idos dos anos 60.
Jaboticabal, cidade interiorana, que ostenta três epítetos: “Cidade das Rosas”, pelas praças ornamentadas, pelos belos e exuberantes jardins, pelas inúmeras roseiras existentes nos jardins das casas e pela beleza de suas mulheres. “Atenas Paulista”, alcunha que lhe foi dada, por Jaboticabal ter sido um berço cultural, com suas escolas que ofereciam uma educação de primeira qualidade, podendo ser citado o Colégio São Luis, o Colégio Santo André, o Instituto de Educação “Aurélio Arrobas Martins”, que posteriormente ficou conhecido como “Estadão”, onde tive a honra de ter cursado o colegial, entre os anos de 1971 a 1973. Além disso, em Jaboticabal existia o Colégio Agrícola “José Bonifácio”, que era uma escola que formava Técnicos Agrícolas, que saiam daquela escola com empregos garantidos. O ingresso naquele colégio, que funcionava como internato, era feito por meio de vestibular, bastante concorrido, e os calouros eram submetidos a trote pelos veteranos, e faziam uma passeata pela cidade que era uma verdadeira festa. Também existia em Jaboticabal uma Faculdade de Farmácia e Odontologia que, posteriormente foi transferida para a cidade de Araraquara. Assim a alcunha de Atenas Paulista lhe foi dada pelos seus tradicionais colégios e, atualmente, pela presença de cinco unidades de ensino superior (incluindo um campus da Universidade Estadual Paulista), sendo que, inicialmente designada Faculdade de Medicina Veterinária e Agronomia de Jaboticabal, foi criada pela lei estadual nº 8.194, em 25 de junho de 1964. A inauguração oficial deu-se aos 3 de maio de 1966 e o primeiro período letivo do curso de Agronomia iniciou-se no dia 1º de junho de 1966, data em que se comemora o aniversário da instituição. Os cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia iniciaram suas atividades através do Decreto Lei nº 69.418, de 25 de outubro de 1971. Em 30 de janeiro de 1976, por ato do Governo do Estado de São Paulo, através da Lei nº 952, surge a Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" (Unesp), englobando os Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo. A partir daí, a designação da Faculdade de Jaboticabal passou a ser Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV).
E a outra alcunha, “Cidade da Música” ou Campeã da Música”, por sua história de glamour musical protagonizada pelas suas bandas: Corporação Musical Gomes e Puccini e Sociedade Filarmônica Pietro Mascagni as quais levavam o nome de Jaboticabal através das suas bandas musicais, que se apresentavam em várias cidades do Estado de São Paulo, tendo na comemoração do IV Centenário de São Paulo sido campeã a Banda Musical Pietro Mascagni e a vice-campeã a Banda Musical Gomes e Puccini.
Jaboticabal, dos anos 60, tinha muitas figuras folclóricas, que acabavam marcando pela forma como agiam e pelos fatos que protagonizavam. Assim, existia a famosa “barriga de pano”. Tratava-se se uma senhora, já na casa dos 60 anos, que colocava enchimento de pano sob o vestido para simular uma gravidez, como se uma mulher da sua idade pudesse engravidar, e utilizava desses artifícios para pedir esmolas. Quando a meninada lhe fazia apupos, chamando-a de barriga de pano, ela xingava e atirava pedras na molecada, que saiam rindo e correndo em disparada.
Certa vez, quando eu trabalhava como eletricista, fazendo um serviço num prédio da Rua Rui Barbosa, que é a rua principal de Jaboticabal. O trabalho consistia em fazer um furo numa marquise que ficava voltada para a rua, para a instalação de uma luminária. A tal marquise tinha uns dois metros de comprimento por um metro de largura, e seu acesso teria que ser feito por meio de uma escada colocada na calçada e apoiada na mesma. Assim, eu subi na marquise para fazer o furo para a instalação da luminária e, assim que subi na marquise, meu parceiro de trabalho retirou a escada para fazer outro serviço. Dessa forma eu estava sobre a marquise trabalhando, e não tinha como descer da mesma, a não ser com a recolocação da escada. Resumindo, eu estava ilhado sobre a marquise. Acontece que, num dado momento, vinha pela rua a famosa “barriga de pano”¸ e um gaiato qualquer resolveu chama-la pelo leu apelido. A mulher olhou e sem saber distinguir que a chamou, haja vista que não havia nenhum moleque por perto, ao olhar para o alto e me avistar sobre a marquise, pensando que tivesse sido eu a mexer com ela, apossou-se de algumas pedras e começou a atirar em mim. Eu era um alvo totalmente exposto à, graças à Deus, sua péssima pontaria. Meu desespero durou até que algumas pessoas conseguiram retirá-la do local.
Dentre as figuras folclóricas, havia um senhor, já de certa idade, que tinha as duas pernas amputadas, e que se locomovia em uma cadeira de rodas. O nome dele não sei, mas me recordo que ele utilizava dos serviços de um jovem negro, com cerca de uns dezoito anos de idade, que tinha o nome de Belmiro. Assim, eles saiam pelas ruas para pedir esmola. O velho estava sempre mal humorado. Vivia xingando e gritando com o Belmiro. “Belmiro, Preste mais atenção! Empurre essa cadeira direito! Seu FDP!”
Belmiro, que pelos procedimentos, denotava ter algum déficit de inteligência, vivia carregando o velho para todos os lados. O Belmiro estava sempre descalço, e com as pernas das calças arregaçadas até as canelas. Quando o velho o xingava, ele resmungava e ameaçava não mais empurrar a cadeira de rodas, e o velho continuava a xingar e ameaçava de não lhe dar comida. Logo mais, Belmiro voltava, ainda resmungado, e continuava a empurrar a cadeira do velho. Era comum a gente ouvir O Belmiro dizer: “Qualquer dia em empurro essa cadeira de uma vez, e você vai ver só o que é bom pra tosse!”
A região em que se via o velho e o Belmiro, com mais frequência, era no Bairro da Aparecida, onde nessa época, ainda havia muitas ruas sem pavimentação, sem asfalto. E era comum ver o Belmiro, descalço, calça arregaçada até as canelas, os pés sujos pela terra vermelha, camisa por fora das calças, empurrando a cadeira de rodas do velho e pedindo um auxílio.
Certa vez, eles estavam descendo pela Avenida João Pinto Ferreira, o nome dessa rua foi dado em homenagem ao fundador da cidade de Jaboticabal, cuja fundação data de 16 de julho de 1828, e, como sempre o velho xingando e Belmiro resmungando. De repente, o Belmiro resolveu colocar sua insatisfação, pelos maus tratos que o velho lhe aplicava, em prática e também gritou com o velho: “Se você continuar a me xingar eu empurro essa cadeira pela rua abaixo!”. Aí o velho lhe disse: “Belmiro, seu cachorro! Empurra essa cadeira direito senão vai ficar sem comida hoje!” Belmiro, tomado pela raiva e humilhação que vinha sofrendo, já há tanto tempo, deu um empurrão com força na cadeira e soltou-a ladeira abaixo. A cadeira ganhou velocidade descendo a avenida e o velho gritava: Socorro! Socorro! Belmiro, seu FDP, vem pegar a cadeira! Eu vou cair!! Socorro!!! Enquanto isso, Belmiro sentou na beira da calçada e ficou vendo a cadeira do velho que ganhava velocidade cada vez mais. Se não fosse trágico, até que seria cômica aquela cena. A cadeira descendo a avenida ia dando uns pulinhos conforme passava em alguma depressão da via. E o velho gritando. Só não teve maiores consequências porque algumas pessoas que viram aquela cena insólita e engraçada, cercaram a cadeira de rodas e salvaram o velho de uma possível queda que poderia ter-lhe sido fatal. E o Belmiro, sentado na beira da calçada, a tudo assistia com a maior tranquilidade. A seguir, Belmiro veio e pegou a cadeira com o velho e foram-se embora. Creio que para onde eles moravam. Depois desse dia nunca mais foram vistos.
Ilha Solteira/SP – 06/11/2015 – 14:15h