Ana

É uma menina pequena, magra e de olhos fundos demais para seus nove anos. Fundos e solenes demais, enfeitados de olheiras por detrás dos óculos. Prefere os prazeres solitários da leitura e dos lápis de cor, a menina de nove anos que todos tratam como se tivesse três. Está acostumada a comer apenas aquilo que quer e a não guardar os brinquedos ao fim de cada dia. É cômodo ter três anos. Mas seus olhos, fundos e solenes demais para três ou nove, guardam algum segredo a um só tempo risonho e melancólico de quem viveu muitas vidas.

Enquanto ela está às voltas com histórias inventadas em sua própria cabeça, o irmão menor gosta de coisas de irmão menor – importunar, roubar a cena de forma algo violenta e amar profundamente. Se ela prefere a solidão à sua companhia, ele desconta a rejeição com alguns tapas bem colocados. O distúrbio, porém, nunca é muito longo ou grave – uma rotina saudável para uma família regular.

Ela está no quarto, contando aos sussurros uma história para o nada. O irmão desconta suas frustrações nos jogos de videogame destinado ao público com o triplo da sua idade. Alguém, algum adulto que vive a vida atual apenas, passa pela sala. O sangue respinga na tela da TV – quase parece escorrer para o chão da casa. Os membros cortados caem no chão e o júbilo da vitória se espalha pelo rosto do menino. A violência virtual explícita enoja e assusta o adulto de uma vida só, esquecido da violência real explícita. Sentindo que talvez seja o momento para uma bela limpeza de consciência sob a forma de uma lição delicada, o adulto vai ter com a menina de muitas vidas, sozinha com seus sonhos no quarto.

“Aquele jogo é muito violento!”, diz o adulto, em tom de reflexão, tentando adocicar a voz para se fazer entender por uma menina que o entenderia de qualquer forma.

Ela olha para o adulto sob o filtro de vidas inteiras, e seus olhos solenes mal piscam. “O mundo dos games é assim mesmo. Violento. Mas o mundo da realidade não é assim.”

O discurso sobre o dever de se comportar como um bom e pacífico cidadão se perdeu na garganta do adulto, e foi substituído por um sorriso um tanto amarelo. “Ainda bem que você sabe que a realidade não é assim.” Ainda usa aquele tom de voz que se reserva às crianças pequenas e aos cães.

Um suspiro pesado escapa dos lábios da menina. Seu rosto redondo se enche de uma amargura atípica da idade, e, ao responder, sua voz está uma oitava mais grave. “A realidade também é assim. Mas não devia”.