CARNES e VEGETAIS

Nem bem as portas da churrascaria rangeram ao serem levantadas e os primeiros clientes já estavam de prontidão à espera. O trio formado pelo marido, esposa e a filha adentraram o estabelecimento. Para não perder tempo, sentaram na primeira mesa e acenaram para o garçom pedindo um “refri” de 2 litros. Juntamente com o “refri”, o senhor de gravata borboleta trouxe três copos grandes com fatias de limão e gelo.

Com os pratos e talheres nas mãos, a família passou pelo corredor onde estavam expostas as saladas, mas nada daquilo interessava aos três. Assim que fizeram a volta, chegaram à mesa onde estava sendo servidas as carnes. Sem tomar conhecimento do que era, pediram um pedaço de cada. Sobre a mesa havia muitas variedades de iguarias assadas e fritas. Felizes, retornaram à mesa.

Passado uma hora e nada do trio finalizar o banquete dominical. O relógio batera meio dia. Agora sim, o ambiente estava totalmente tomado pelo vozerio. Predominantemente, o papo que versava sobre futebol, família, religião e boa vida ascendia os ares, misturando-se ao cheiro característico de comida. O trio terminou a remessa de comidas sólidas, iniciando imediatamente a segunda etapa, apressaram-se para ser também os primeiros a pegar os doces. E de colherada em colherada, as caldas derramavam pelas bordas dos pratos.

Um senhor de bigode ralo adentrara o ambiente e com os olhos procurou um lugar para sentar. Restava somente uma mesa do outro lado; dirige-se para lá. Deixa o chapéu panamá sobre a mesa e segue para onde estão os pratos. Pega um deles e segue o mesmo ritual dos necessitados de proteínas: “um pedaço de carne de todos os cortes, por favor.”

Retirando os restos dos dentes, com a sobremesa palitada, o pai sacou da carteira o cartão de crédito. Homens foram projetados com envergadura ampla e larga. Desde os primórdios, esses ditos responsáveis, carregam nas costas o paradigma de ser o esteio familiar e aceitam as responsabilidades, que passivamente eles mesmos disseram: “sim”. Tal paradigma é: um para pagar as contas e o restante da “despensa doméstica, que não dispensa a quantidade de estoque de alimentos em suas prateleiras”, para comer. Não obstante, o rebelde que quiser saber o custo e o peso dessa responsabilidade, que contrate os serviços equivalentes à responsabilidade oficial, no câmbio paralelo.

Fartos, com o excesso lateral à mostra e com os andados trôpegos, mãe e filha dirigiram-se ao caixa para efetuar o pagamento. Esse é um tipo de peso que não as incomoda. Enquanto escorregava o dedo pela tela do celular que traz colado à mão, a filha abriu a boca num bocejar quilométrico que demorou segundos e mais segundos para desfazer-se. Aquela moça, em vez de carne e ossos, denota ser estruturada em cristal, tamanha a sua beleza. Talvez um sensível e intocável cristal nobre, recoberta com a brancura da porcelana.

Por ela passou um mosquito aloucado – pelo menos em suposição – que escapou à tragédia: “essa foi por pouco. Fui salvo pelo erro”. Talvez tenha dito isso porque bateu de frente com a vidraça, caindo estatelado no chão. A morte não escolhe os parceiros que encaminhará à vida eterna.

O senhor de bigode ralo passou pela mesa de massas, observou bem as iguarias e caminhou até a mesa de carnes e após servido, cochichando, balbuciou algo no ouvido do servente: “como é belo ver essa massa fazer regime e controle alimentar? Aposto que são ternos e mansos de coração. As válvulas devem fazer seus papeis muito bem : abrem e fecham sem causar transtornos ao bombeamento de sangue às veias”.

- Como assim? O senhor é doutor? O que está querendo dizer com isso? As minhas carnes são bem equilibradas e magras. – e havia sentido nas palavras do servidor: era magro, alto e esguio. Por princípio, praticava o vegetarianismo. Um servidor de carnes sustentável.

O senhor retorna ao seu lugar; por ele passou o garçom: “vai tomar alguma coisa, doutor?”

- Por que desse pronome de tratamento; você me conhece?

- Não, mas imagino que seu tratamento seja eficaz e expressivo ao paciente. Coração é frágil e precisa de carinho.

Ao passar novamente pelo corredor, o garçom foi interpelado pelo senhor de bigode ralo: “fora essa caminhada árdua do dia a dia, você é praticante de esportes? Pratique esportes e ame o seu coração antes que o médico cardiologista adote e ame o vosso bolso e você!”

- Que isso, senhor! Esporte, basta o que ando aqui, equilibrando a bandeja com uma mão!? Como andarilho das trilhas formadas pelas mesas e cadeiras, saio daqui todos os dias com as pernas bambas e doces, que tenho pena de mim mesmo! E o senhor, é praticante?

- O quê? Tá loco meu!! Suor foi feito para asnos e burros! Tal qual sua bandeja, bebo e como em demasia e equilibro o meu constante desequilíbrio coronário com os meus amigos de profissão. Poderia deixar com você uns cartões de minha clínica para ser entregues aos clientes para ser oferecidos juntamente com a conta? Uma mão lava a outra e as duas, ensaboo o corpo.

- Filósofo de frases prontas em Doutor? O melhor é o senhor deixar com o servidor das carnes.

- Bem lembrado. Vou voltar lá, mas não para deixar os cartões: agora é hora e vez dos vegetais. Depois os doces...depois os... amanhã talvez ataque cardíaco. AVC.

- AVC Doutor? Isso leva a óbito.

- Sim. Sim! O crime aconteceu na floresta fechada. Era noite escura, dominada pelo breu soturno, sem a mínima possibilidade de, embora tenha pedido socorro, ser ouvido. Incrivelmente, naquela noite sem luar, lobos uivavam desesperadamente e sordidamente, até a Natureza conspirava em favor do assassino. Foi muito cruel! Só de contar, fico arrepiado.

- Acho que vi a matéria sobre o que estás falando no programa do Datena. Fiquei chocado.

- O crime foi tão bárbaro, tão sanguinolento, que pode mesmo ter ganhado as cores desses programas. Não acompanho jornais televisivos; por isto não sei te dizer.

- Para e por onde caminhamos? Cada dia que passa, mais impera a crueldade, a malícia e a sede de sangue nos corações das pessoas.

- Você, não sei por onde caminha, mas eu nesse momento caminho entre as mesas e cadeiras em busca de mais umas fatias dos bois, cabritos, javalis, porcos e galinhas, que morreram naquela noite sem luar. Fúnebre! Triste demais. Para os animais que morreram; alegre demais, para mim e os que aqui estão presentes. Estamos sorrindo à toa. Delícia!

Deixando o garçom falando sozinho, com o andado meio penço para um dos lados, saiu tropeçando nas cadeiras. Resmungava qualquer coisa; para quem entende de leitura labial provavelmente seria: "acho que comi meio muito, mas nada o suficiente

que suporte a necessidade do metabolismo até o jantar amanhã! Ficar sem comida por 18 horas ininterruptas, faz a diabete explodir. Se ficar sem comer ela estoura. Diabete é doença complicada e deve ser pensada pelo diabético com inteligência e carinho. Carnes e vegetais nunca é demais...insulina jamais!"

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 07/08/2015
Reeditado em 09/08/2015
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