PAPAI (semelhanças)

Meu nome? Que brincadeira mais insensata! Cão faminto, tomado pela sarna, doenças e sem bussola para norteá-lo na Geografia dos perigos das ruas do mundo, como é o meu caso, não tem nome; ainda mais numa era em que as espécies domésticas valiosas e recebedoras de carinho diferenciam-se pela raça do lado de lá de além-mares, cor, pelagem, vermifugação, moradia e pedigree. Sem ter origem, identidade lenço e documento aceito ser chamado por qualquer nome. Não se mede o caráter, brio e sensibilidade do cão, pelo nome e o status quo que possui, há muitos por aí engomadinhos que desfilam com carinha para fora dos carros, comem ração de salmão com valores nutricionais equilibrados, que são canastrões e raivosos a ponto de agredir a sua própria espécie; contudo se tais justificativas não são suficientes, pode me chamar de Leleco. Simplificando: Leco. Este é o nome que me veio à cachola, no entanto, o que mais eu queria, é ser respeitado. Amado? O amor é próprio de cada um e só pelo fato de respeitar-me, não tecendo comentário fundamentado ou não, já seria motivo suficiente de dizer que me ama. Ouvir respeitando as vivências e aspirações daqueles que respiram a sorte cotidiana, é ato de puro amor. Para mim isso basta. Outra coisa: não quero e não preciso de bajulação de ninguém. Para o bem da verdade aboli até isso, mas sempre procurei evoluir nas críticas, são ardidas e doídas, porém fazem-me refletir. Não entenda essas coisas como sendo prepotência e arrogância de minha parte. Aprendi latir a vida de forma racional; excluindo portanto as emoções, principalmente aquelas fraudulentas, corruptas e melindrosas. Convivo muito bem com as minhas frustrações interiores.

Após essa introdução sobre o meu histórico de vida, vou pormenoriza-la para os senhores. Porém, com um detalhe: que sejamos espontâneos e claros na nossa relação de confidente e ouvintes; pois de chacotas e patacoadas, chega às por que passei ao longo desse tempo latindo e uivando o desprezo nos meandros das estradas. Espero que me entenda e uma vez que estás em concordância com minha proposta, sigo divagando sobre o meu curriculum de vida. Se fosse perfeito e gozasse das coisas que os senhores gozam, essa explanação poderia ser denominada como Conquista Superadora de Obstáculos, mas como sou um cão com as características já descritas, admito que mais cedo ou mais tarde, serei superado por ela. Quem? Nova brincadeira de mau gosto, é? A morte, obvio! Então prepare-se para o que vai ler. Promete para mim que não irás chorar? Choro é como borracha esponjosa, enxuga o que está molhado e exime-me de palavras. Fico engasgado pela emoção. Está contente em descobrir o meu ponto fraco? Bom seria se fosse somente este!...

Nasci numa família em que na mesma barrigada, vieram dez mirrados e chorões. No momento de mamar e não havia hora, não dávamos trégua para a coitada. Ver-se livre da nossa fome miserável, somente quando a infeliz de nossa mãe saía para revirar as latas à procura do que comer. Através dela, o encontrado nas latas e fonte de alimento era prato nobre para nossa família. Uns com muito outros sem nada. Como ensinamento, ela nos dizia que se a fome tivesse cor, fatalmente vestiria o preto. Exato: preta feito o breu soturno. Afirmava que fome é prenuncio de morte! Pois bem, desses salvaram-se somente dois ou três. Por que desse desconhecimento de quantos irmãos que se sobrepuseram a selvageria de disputar com unhas e mordidas a procura pela teta e o pouco leite profuso que tinha? Está explicado. Minha mãe era miúda, desleixada e vagava pelas ruas em busca das sobras. Era cair no cio que sem pensar nas consequências, liberava para qualquer um. Desculpe-me a expressão, mas ela era vagabunda e distribuía de graça o objeto de desejo para quem quer fosse: chegou, abanou o rabo, cheirou e ela aprovou, trepava mesmo! Deleitava-se em se ver enrabada por um macho. O desconcerto vergonhoso maior era quando ela estava nos amores atracados e fortuitos com a cachorrada e passava outro cão e que talvez por não ter a chance que o sortudo estava tendo, que era degusta-la com toda fúria e êxtase, berrava: “Planta o ferro sem pena e dó que a cadela é nossa”. Maldito instinto canino de não saber fazer as escolhas! Meus outros irmãos dizia para ela fazer sexo e não fazer cães. Mas!...Por outro lado, era uma santa e segurava a barra de todas as formas. Nesse tocante, muito responsável, porém depois da obra mal construída, pouco adiantava. Mãe é mãe; Deus a tenha em bom lugar!

Nesse ínterim, cada um que cuidasse de si, enfiasse o focinho e revirasse o que estivesse dentro das latas em busca de alimento para saciar o empretecimento que crescia no estômago. Embora minha mãe não gostasse, às furtivas, acompanhava-a nessas investidas. Para ela humilhação e para mim, tremenda sorte e fartura. Nisto perdi contado com meus irmãos e pelo sei salvaram-se alguns, imagino que no máximo três; mesmo não sendo saudáveis de saúde, salvaram-se os mais resistentes.

Confesso que sempre fui tímido e retraído e muito destes traços de personalidade se deve as frustrações por quais passei; mas em certa ocasião tomei coragem e sai pelo mundo atrás de uma rapariga que havia prometido para mim que faria comigo aquilo que minha mãe fazia com todos os machos de rabo solto. Acreditando em suas palavras, não pensei duas vezes e enveredei-me atrás dela. Acreditar na honestidade que cada um trás consigo não custa nada tentar descobri-la. Decidido, arrisquei. O máximo que poderia acontecer era perder a batalha, motivo de perda em cadeia e em seguida saberás o porquê da afirmativa.

Mais um segredo: o meu sonho era ser pai e obviamente, um pai responsável, exemplar, educador e trabalhador para alimentador a prole. Se concretizado com ela, mesmo se não ficássemos juntos até que a morte nos separasse, pediria a guarda dos filhos, que ficariam comigo. Nada galanteador, naquela ocasião via-me como sonhador e com dotes de pai responsável. Considero-me idealista e fantasioso sim. Ainda mantenho o senso que podemos expandir para todos, ou pelo menos para a maioria, aquilo que pertence apenas a um. Aprendi isto nas ruas, talvez seja por isto deste meu pensamento anacrônico de ser responsável com os meus, isso quando os tiver. Quantos sonhos irrealizáveis, pelo menos até agora. Caso aconteça, não serei eu a tornar minha espécie ainda mais vira-lata, sem valor, desprezada e inócua pelas demais espécies. Quem sabe o primeiro exemplo seja o exemplo que está faltando para uma revolução!...ahh, deixe para lá!

Difícil saber por quais motivos, parecendo mosca que se deixar levar por um fiapo de carne podre em qualquer lugar, a pretendida vagava pelos quatro cantos da cercania. Andava estupidamente para aqui, para lá. Por ignorar e não conhecer o instinto de fêmea achava aquilo muito estranho. Até quando ficaríamos zanzando!...Com isto, a concorrência ia aumentando, a ponto de chegar num número de dez batendo cabeça, brigando e pondo à prova a virilidade selvagem de minha espécie. Nessa levei a pior, porque sendo eu o mais desnutrido da turma, logicamente, não conseguiria medir forças com os demais. Havia cada brutamonte maior que uma montanha. Naquele tempo, a selvageria entre os pretendentes para conseguir uma fêmea era algo insano e quem pudesse mais, que devorasse o outro. Até nisto prevalece os mais fortes e truculentos.

Para safar-se da avidez e brutalidade dos desejosos, ela deitava no solo e ali ficava fazendo hora. Quando a massa de seguidores dispersava, ela direcionava para aquele que mais a convencia e se engraçava. Tudo levava a crer que ela manteria a palavra e aventura não seria perdida. Para tanto, mantinha-me longe da aglomeração. No vacilo geral veio como foguete e precipitou para cima de mim, esperando como fiz, o mesmo. Às vezes um segundinho pode representar a perda definitiva do trem da conquista. Pulei para cima, agarrei-lhe pela cintura e a puxei para trás, como locomotiva que puxa um comboio de vagões. Força de gigante. Por vezes, quem espera que ocorra o melhor da realização do ato, termina caindo no abismo do absurdo, quando não, da desgraça; e foi o que aconteceu.

Os pretendentes sentido-se traídos vieram em disparada e ela, assustada e tomada pelo pânico, saiu em disparada comigo atarracado nela, mas nada de concreto. Bestamente, deveria ter soltado e fugido para o lado oposto, preferi correr perigo. Para safar-se a madame enveredou pela pista de rolamento da rodovia e numa operação relâmpago, veio um carro e bateu no meu quarto traseiro, quebrando-me a perna direita, escadeirando-me. Fui lançado metros de distância; por sorte, o veiculo que acidentou-me, porque a disputada saiu incrivelmente ilesa, era de um veterinário que rapidamente saiu do carro vindo ao meu encontro. Via tudo lucidamente de visão e mente. Fui levado ao hospital e após longo período inativo, passando inclusive por cirurgia, fiquei paraplégico e o pior, impossibilitado de ser pai: perdi um de meus escrotos. Precisei usar sonda e coisa mais. Isso que dá em acreditar, contudo, honro-me em dizer que tentei.

Como o tempo cura as feridas que ele mesmo abriu, aliviei-me desse trauma. Em certa ocasião de meu ciclo vital, perdi a memória e para mim tudo parecia normal. Tudo era naturalmente igual e não via nada que diferenciasse uma coisa da outra. Nesse período, passando em frente à casa de um senhor catador de materiais recicláveis, havia uma boneca pequena, porém, perfeita com cabeça, olhos, cabelos, espinha dorsal, pernas, pés, braços, enfim a perfeição era tanta, que acompanhava-lhe todos os órgãos internos. Com muito custo, peguei-a pelas patas e pus ela no ouvido e notei que o coração batia. Grata surpresa encontrar um ser vivente respirando assim do nada.

Aos trancos e barrancos peguei ela pela metade do corpo e com extremo cuidado para não machucá-la, levei para minha casa; na realidade, uma cobertura que ficava debaixo dos escombros na rua próxima. Lá, estranhando os costumes e hábitos daquela criatura, dei banho e troquei-lhe o conjuntinho rosa que encontrei em outro monturo. Fuçava todo e qualquer tipo de lixo. Numa hora ou outra, toda inutilidade hoje, pode ser útil amanhã. Isso fazia quando estava lúcido, ao contrário, quando baixava os instantes de loucura, maltratava a coitada. Certa vez peguei ela pela boca, joguei para cima e aparei antes de cair no chão. Na segunda vez, impiedosamente, deixei-a cair de cara; a resignada gritou na hora: “Aiii, está me machucando, sou de carne e osso”. Sangue escorreu-lhe pelo corpo.

Voltando à realidade, aquilo cortou-me o meu coração. Fiquei dilacerado com minha atitude a ponto de nunca mais fazer novamente o que havia feito. Depois desse episódio o nosso relacionamento evoluiu e nunca mais fomos os mesmos. Quando as coisas são regidas pelo respeito e saudabilidade, a tendência é que melhore a cada dia e foi o que nos acontecera. Um dia brincando com ela de joga para lá, joga para cá, mas com excessivo carinho e bem de leve, ouvi um sussurro no meu ouvido: “Papai! Usted és mi papa! Faça vendaval ou vento outonal, o senhor é o meu Papai! Isso é tudo que que tenho para te revelar Papai!

Diminui a intensidade dos movimentos, arregalei os olhos e apurei os tímpanos. E magicamente ouvi: “Papai”!. Impossível é manter-se indiferente. A sensação primeira foi de uma lágrima em seguidas, o choro de alegria e ela sorrindo, deitou a cabeça em meu colo e repetia insistentemente: “Papai!” Isso era tudo que eu queria e no afã de conseguir, fui parar numa cadeira de roda; mas quis o destino que o que não serve para uns é objeto valioso para outros, aqui está o presente e a conquista pretendida. Às vezes não entendo, sobretudo porque almejo coisas a mais do que mereço; em contrapartida, consigo aquilo que considero não merecer. Minha vida é um eterno dualismo.

Tenho que decidir um nome para chama-lo, ainda não decidi em razão de não saber qual é o sevo desse meu achado, mas nome é o que menos importa. Ofertou-me um beijo na bochecha e eu instintivamente fiz o mesmo. Sua bochecha estava fria, porém, o coraçãozinho pulsava compassado e superaquecido, o que fez esquentar o meu; pois suave frio de contentamento e o coração acelerado!

- Papai, não me deixe mais sozinha nas mãos de qualquer um. - em silêncio parei de chorar e juntamente com ela, sorrimos por longos minutos.

- Anjo sem asas despencado do céu! – disse. Após silêncio arrebatador, continuei: o seu nome de batismo de hoje em diante minha filha será Leca. Sei que você ainda está engatinhando, mas saiba que o sentimento que devemos nutrir um pelo outro nos anos vindouros é o de gratidão e as inegáveis virtudes das virtudes, é a honestidade e sinceridade; essa profusão de sentimentos selam os caminhos da retidão de nossa espécie.

- Amém, que assim seja Papai!

Bom dia

PA

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 22/04/2015
Reeditado em 26/04/2015
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