CONTOS NORDESTINOS – Romance – Parte III

Assim conta minha mãe, que, depois de casada, se via numa vida feliz, apesar de humilde e simples. Após um namoro proibido com o galanteador que morou oito anos em São Paulo, estar casada com José era a plenitude. Eram felizes, porém, não demorou para que José, pouco a pouco, voltasse à vida de boêmio, saindo com os amigos para a madrugada, tocando seu violão e fazendo serenatas. O curioso era que, quase sempre, Bia saía também noite afora, seguindo o marido e seus amigos, um tanto afastada, rua acima e rua abaixo, com a intenção de averiguar se ele encontrava outras mulheres, mas nunca viu nada de mais.

Muitas vezes, os amigos de José apontavam, dizendo:

- Olha a sua mulher atrás da gente, José!

- Eu sei... já percebi!

- Bota ela pra casa, homem!

- Por que? Deixa, que ela só está cuidando do que é seu...

- Ah, se fôsse minha mulher, eu dava uma surra e mandava de volta pra casa.

- Não, não faço isso, não! Ela não está fazendo nada demais, o errado sou eu...

Numa noite, seguindo o grupo de seresteiros, Bia viu que eles pararam e entraram na casa de uma prostituta. Bia, cautelosamente, entrou pela porta dos fundos da casa. Porém, Gildete, a dona da casa, indo à cozinha para apanhar mais bebidas para o grupo de amigos, deparou-se com Bia, encolhida a um canto, olhar assustado. Gildete aproximou-se e disse, aos sussurros:

- Bia, o que faz aqui?

- Meu marido... estou seguindo meu marido...

- Sente-se, então! – disse Gildete, puxando uma cadeira. Bia sentou-se e ficou calada.

Gildete apanhou as bebidas e os copos e voltou para a sala, enquanto Bia, da cozinha, escutava os burburinhos. Repentinamente, um silêncio calou as vozes e a música. José veio à cozinha, passos lentos, puxou uma cadeira e sentou-se defronte Bia.

- O que está fazendo aqui, Bia? Isso não é hora e nem lugar pra uma mulher casada!

- Só saio daqui com o meu marido!

- Bia, eu só parei aqui com meus amigos para beber um pouco, não tenho intenção de me deitar com a Gildete.

- Então, vamo embora comigo!

- Vá na frente, que eu vou em seguida!

- Não vou sem você, de jeito nenhum!

- Está bem. Só vou tocar mais uma música e, então, nós vamos embora.

José voltou para a sala e tocou mais uma música em seu violão. Bia nada ouviu que denotasse desrespeito. Ao fim da canção, José voltou à cozinha e acompanhou Bia de volta para casa.

Numa outra noite, lá ía Bia, seguindo o grupo de boêmios, enrolada em seu xale preto, quase invisível na noite escura e sem luar, pois não havia luz da rua e a luminosidade vinha apenas da Lua, quando os homens, incluindo José, entraram num cabaré. Dessa vez, Bia ficou na calçada, cheia de raiva. Ela sabia que José estava lá dentro, tocando para as prostitutas dançarem com seus homens. Bia saiu a passos rápidos pela noite e foi direto até a casa do delegado da cidade, Seu Pacheco. Bateu na porta da casa e, após alguns minutos a porta se abre.

- Bia Ferreira! – exclamou o delegado, em seu pijama, segurando uma lamparina na mão. – O que houve?

- Seu Pacheco, venho pedir um grande favor!

- Pois diga logo!

- Eu preciso que o senhor acabe com a folia no cabaré! Meu marido está lá dentro, tocando para aquelas vagabundas! – Bia trazia a raiva em sua voz, mas as lágrimas denunciavam o seu ciúme doentio.

- Bia, eu... eu não sei se posso...

- Por favor, Seu Pacheco!

Diante da súplica carregada de emoção, Seu Pacheco disse:

- Pois bem, vá pra casa, que vou mandar o Cabo Irineu agora mesmo acabar com a festa, está bem?

Bia agradeceu comovida e pôs-se de volta pra casa. De sua cama, ainda ouviu os seresteiros cantando pelas ruas por mais algumas horas, até que José voltou pra casa, quando o dia já se chegava no horizonte. Deitou-se na cama ao lado de Bia e disse:

- Foi você, não foi?

- Foi eu, o quê?

- Que pediu para o delegado acabar com a festa no cabaré?

- Sim, fui eu... Aquilo não é lugar para um homem casado!

- Você é danada! – José limitou-se a dizer.

Ainda outra vez, em uma de suas jornadas noturnas, Bia seguia o marido e seus amigos, a tocar e cantar pela pequena cidade, rua acima e rua abaixo, quando, na escuridão, passando por um terreno que estava em construção, sem enxergar o chão direito, Bia atolou o pé num monte de cimento e a sandália ficou grudada ali. Bia soltou o pé e continuou a caminhada com um pé descalço. No dia seguinte, estava ela visitando os pais, conversa vai, conversa vem, e Seu Manoel aparece segurando a sandália que ela deixou no monte de cimento na noite anterior.

- Isto aqui é seu, não é?

Bia ficou vermelha de vergonha. Sabia que o pai era pedreiro, mas não imaginava que justo ele encontraria a sandália no cimento da construção e que, imediatamente, associaria a ela.

- É... acho que é, sim, Senhor! – respondeu Bia constrangida.

- Tu andas seguindo o doido do seu marido pela noite, não anda? – ao ver que Bia nada respondera, Seu Manoel finalizou o assunto: - Uma doida seguindo um doido!

Apesar de José ser desmiolado, Bia nunca o viu fazer nada que a desonrasse. José era apenas um homem com ânsia de cantar e tocar... Era apenas um músico, cantor, seresteiro e boêmio. Um romântico inveterado, incapaz de viver longe das noites enluaradas. Deixava que Bia o seguisse, o acompanhasse e o vigiasse de longe. Via nisso um carinho, um cuidado! Nessa loucura, se amavam tremendamente.

O casal teve filhos em Lagoa do Ouro. Duas meninas. Uma delas morreu de doença misteriosa ainda bebê. A outra veio com eles para São Paulo dois anos mais tarde. Em São Paulo, essa filha também morreu, sufocada com um parafuso que engolira. Ainda tiveram dois meninos e uma menina, a caçula. Esses, cresceram e dão trabalho até hoje... Bia e José visitaram Lagoa do Ouro duas vezes com os filhos e ninguém naquela cidade negava o bem que um fazia ao outro, tão elegantes e bem vestidos que andavam, a felicidade a resplandecer no rosto de ambos.

Bia foi muito feliz ao lado desse homem, seu marido e companheiro, por quem era apaixonada e enciumada e... é ela minha mãe... e ele meu pai!