Extraído do livro da autora: “… que trem é esse?”

 
UM ESCORPIÃO PASSOU POR AQUI
 
       Mãezinha passou o taxo de doce de figos verdes para a boca de trás onde o fogo é mais brando, mas ao fazê-lo, a labareda sobe pela trempe aberta e uma luz forte, um flash natural cor de laranja, lambe o seu rosto alumiando sua beleza. Nossa!... Que linda! Pintores e fotógrafos não perderiam esta aparição. Além da sua boniteza, ela é carregadinha dos jeitos das moças da cidade grande, da capital, apreciados demais por este sertão afora. O fogo dá um estalo estremecido e agudo ao mesmo tempo em que umas fagulhas, parecendo estrelas vivas, voam até os cabelos de mãezinha que começam a incendiar. Levo um susto danado e meu grito sai igual ao estalo do fogo, estremecido.
—  Mãezinnnnha...
Mas ela já é íntima do fogão de lenha e suas artimanhas. Abafa e apaga o pequeno incêndio com o pano de panela, serenamente, sem sobressaltos. Assustada com o acontecido, eu nem sequer percebi que a minha roupa se aproximou mais do que devia da língua gulosa e rápida do fogo vermelho alaranjado misturado com um azul ardente, que, sem dó e muito apetite, lambe a barra do meu vestido de bolinhas, o melhor de todos. O fogo começa a subir e se alastra pela saia rodada. Como uma gata fugindo de água fria, eu pulo do fogão com os braços já fora das mangas do vestido que cai nos meus pés. Fico ali no meio da roda de fogo parecendo um escorpião condenado a morte. Dou um salto pra fora do círculo em chamas como quem pula uma fogueira de São João. Das pequenas. Meus pêlos das pernas ficam todos chamuscados, mas nada de grave comigo, porém, sem salvação pro vestido. Que pena! Sobraram apenas as cinzas e o cheiro forte de tecido queimado no ar abafando todos os outros aromas. Mãezinha desaba a me xingar:  “Isso é até bom, que é uma lição pra você aprender a ouvir e dar valor quando eu falo, agora você não vai poder sair pra um lugar melhor...”, e todos esses trens que as mães falam pra mostrar que têm razão, que elas sabem mais do que nós e nos dominarem. Sem escutá-la, saio e vou andando pela casa só de calcinha, sem me importar com o meu corpo em transformação, desabrochando. Visto a roupa que menos gosto — não sei exatamente o porquê.

 

 
Fátima Rocha Perini
Enviado por Fátima Rocha Perini em 11/02/2014
Reeditado em 14/03/2014
Código do texto: T4687081
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