Amélia
Ah, Amélia! Essa sim era mulher de verdade. Viera de uma família rígida, mas nunca se dobrara. Apesar do cinto do pai que lhe marcava as costas, não deixava de correr pelos pastos, sentindo o vento nos cabelos, rolando pelo capinzal e roçando o mato com sua pele delicada. Brincava no meio dos meninos e os vestia com saias, além de desejar seus carrinhos e brigar com eles. O pai dizia que era uma maria-homem, espancava a pequena. A mãe não apartava, muitas vezes também agredia a filha. Lugar de moça é aprendendo as prendas domésticas. Mas a pequena não servia para o fogão, deixando bolos queimar ao jogar bola no campinho de terra. Não gostava daqueles babadinhos em seus vestidos, preferia usar shorts, o que a deixava mais livre. Nada de calcinha e sutiã, mesmo quando os seios já surgiam por debaixo da camiseta. Os irmãos tentavam doutriná-la, mas resistia e era chama de égua xucra. Quando sentiu escorrer a primeira menstruação, não se desesperou, lavando-se no rio do sítio e procurando criar um alarde acerca disso. Embora resquícios de sangue, teriam revelado à sua experiente mãe, o novo estado em que se encontrava. Seu gênio naquele momento foi associado aos hormônios, como a mãe dizia: “coisa de menina-moça.”.
Gostava de beber o leite fresquinho que ordenhava na vaca já magra da família. O pai faleceu. Chorou pouco, pelos castigos sofridos, mas não deixava de ter sentimentos. A mãe conseguiu um padrasto. Várias vezes o homem que assumiu o lugar de seu pai, tentava lhe tocar a pele, por baixo das vestes. Resistia e protestava. A mãe, mulher da roça, só tinha olhos para o trabalho e achava invenção de menina essa conversa de carícia. No matagal, sofreu ataque. Os irmãos saíam cedo para roçar. O padrasto tentou estuprá-la, sabendo que era virgem. Quase conseguiu. Mas Amélia, que era mulher de verdade, conseguiu se desvencilhar e acertou a cabeça do sujeito com uma pedra. Não voltou para constatar se estava vivo ou morto. Ganhou a estrada e saiu pelo mundo. Subiu em um caminhão com pessoas que iam tentar a vida na cidade. Chegando lá, começou a aprender com os meninos da rua, que a achavam bela e ensinavam seus truques. Aprendeu a roubar e lobo foi detida e depois solta. As pessoas diziam: “como pode uma menina tão linda...”.
Sabia como era o sabor de um beijo. Já havia provado de um garoto do sítio vizinho aos de seus pais, no meio do milharal. Agora provava a boca de um garoto de rua, o líder, que não tinha um hálito muito bom, mas possuía vigor ao beijar. Acabou indo parar no orfanato, sendo líder das meninas que ali estava internadas. Precisou primeiro brigar com algumas. Fizeram uma rebelião contra os maus tratos sofridos. Apanhara de palmatória das mulheres que administravam o lugar. No dia da revolta, uma das administradoras foi feita refém e recebeu também seus bolos de palmatória. Ficaram felizes quando foi adotada por uma família em busca de uma criança que substituísse o filho que não tiveram. Na nova casa, não era obrigada a lavar e passar, conseguia fazer o que desejava. Aprendeu a ler e adorava os livros. Logo começou a cursar uma universidade, se adiantara em relação as crianças das séries pelas quais passara. Adotou outras leituras, sentindo o peito encher-se de emoção ao ler Simone de Beauvoir, Clarice Lispector, Virginia Woolf e tantos outros nomes que aprendeu a admirar.
Na faculdade aprendeu sobre o sexo, quis ser possuída e possuir alguém dessa forma. Sentiu que era um prazer diferente e que pequenas dores e incômodos inesperados fizeram parte dessa nova descoberta. Já sabia sobre o próprio prazer, já que nos banhos de rio conseguira sentir seu corpo nas águas turvas do sítio. Mas desejava ir além. Conheceu uma moça, que possuía uma oratória inigualável. Se apaixonaram e logo pode sentir uma mulher em seus braços. Não se incomodava em esconder e não se importava com os dedos apontados e as críticas feitas em cochichos maliciosos. Amália perseguia o sonho de ver as mulheres libertas das condições que um dia quase fizeram dela uma cativa. Descobriu que sua própria condição de mulher, havia sido inventada e cada vez mais se sentia indo além de um sexo. Começou a expressar-se através da escrita, publicando com o apoio da universidade que estudara, já que também desenvolvia sua tese de doutorado. Tornou-se famosa com seus livros, que eram apontados como fórmulas para a mulher moderna. Na empresa que trabalhava, era respeitada e sua postura não deixava espaço para nenhum tipo de brincadeira mais tendenciosa. Destacava-se por sempre desejar dar o melhor de si.
Participou de movimentos pela cidade. Aderiu a passeatas. Enfrentou a polícia e mais uma vez soube o que é passar a noite em uma cela. Fez amizade com as detentas. Chegou a ser assaltada. Foi também insultada pelo prefeito, que menosprezava o problema dos maus tratos às mulheres, apesar de ser algo que já mobilizava a opinião pública. Se filiou a um partido para minar as forças de reeleição daquele inimigo declarado, conseguindo eleger uma mulher para a prefeitura da cidade, o que foi um marco na época. Não desejou se favorecer com cargos políticos, seguindo sua carreira e seus estudos. Participava de encontros em escolas e universidades, procurando levar uma mensagem diferenciada aos jovens, pensando que quanto mais cedo tivessem acesso a certas informações, melhor seria o desenvolvimento para que não sofressem como ela na infância. Esbarrava na tradição das famílias e em valores resguardados como um bem precioso para a educação. Aderiu a greves e seu nome aparecia ligado a quase todas as mobilizações populares da cidade e algumas com proporções de nível nacional.
Soube do falecimento da mãe. Comparecendo ao antigo lugar de suas memórias, não sentiu saudade. Viu a mãe no caixão e fez um gesto comedido. Os irmãos, com trejeitos grosseiros, vieram cumprimentá-la, admirados com seu porte o que eles chamavam de nobreza da cidade. Soube que a mãe havia se separado daquele padrasto e conhecido outra pessoa e engravidara mais uma vez. Conheceu uma nova irmã, uma moça de vestido de chita e olhar baixo, que conversava fitando os sapatos das pessoas. Voltou para sua casa, os que a adotaram já com certa idade. Disse aos irmãos que se precisassem dela, poderiam ligar, deixando-lhes um número de telefone. Terminou sua tese, sendo aprovada por uma rigorosa banca. Seus estudos se tornaram referência para o chamado movimento feminista. Conheceu outra pessoa, um homem que a encantou. Se amaram intensamente. No ato sexual, não desejava ficar por baixo, como um animal sendo coberto. Se recordava de Lilith a primeira esposa de Adão e desejava ficar por cima, mas algumas vezes esquecia isso e invertia a posição. No amor não existem feminismos e machismos e nem posições certas.
Tiveram um casal de filhos, que vieram com intervalo de pouco mais um ano. Como adorava aquelas crianças. Os dois se desdobravam, trabalhando e cuidando dos filhos, além de dividirem as tarefas domésticas. Presenteou o filho com uma boneca e a filha com um soldadinho. Claro que as crianças trocavam os brinquedos e tinham liberdade de agirem conforme sua vontade, desde que não oferecessem risco, por causa da inocência diante das coisas do mundo. Ela o marido mantiveram-se sem religião, acreditando que isso estava em desacordo com seus ideais. Casaram no cartório, já com certa idade, apenas para assegurarem para os filhos uma herança, em caso de falecimento. Os filhos aprenderam outros valores, o menino repreendido quando utilizava frases que denegriam as meninas e a menina aprendendo sobre coisas além do lar. Mas não se incomodavam com essas convenções. Os pais adotivos faleceram. O marido acabou sucumbindo antes dela. Amélia, que era mulher de verdade, chorou apenas pela saudade do marido, mas sabia que faz parte da vida, a morte. Os filhos, já crescidos, admiravam tanto a mãe que fizeram dela uma referência. Na lápide dessa mulher estava escrito, “Amélia, antes de tudo, mulher.”.