Leitor
Chamava a atenção. Andando sempre com um exemplar embaixo do braço. No ponto de ônibus, era visto lendo e não demorava a vê-lo com outro livro. Não sabiam como conseguia não perder o coletivo. Se entravam com ele, passava a catraca e logo se sentava e continuava sua leitura. Se ficasse de pé, era uma mão agarrada na barra de segurança e outra erguendo o livrinho. Devia ser algo interessante, pois não desgrudava os olhos daquelas palavras. Descia e seguia seu caminho. O impressionante é que caminhava lendo, sem tropeçar ou esbarrar nas pessoas, como se fosse guiado pela literatura. Chama a atenção, em um mundo onde não se vê tal hábito e na correria do dia-a-dia, onde as pessoas têm tantos afazeres, que a leitura quase que só vem por alguma obrigação. Talvez seja esse o caso, uma carreira promissora ou um curso que exige bastante.
Na infância, a mãe analfabeta dizia que estudar era importante, ficava mais vidrada na televisão. O pai, já aposentado, costumava ler jornais e revistas, vez o outra aparecia com algum livro, foi pegando mais gosto a medida que ia envelhecendo. Entre os livrinhos de palavra cruzadas, algum exemplar literário que disputava a atenção com o indispensável radinho de pilha e a programação da televisão, entre uma programação e outra, lia algumas páginas. As primeiras leituras, obrigadas na escola. A raiva de ter que ler Graciliano Ramos, com o insuportável “Vidas Secas”. Como pode uma história com uma cachorra chamada baleia, ambos mamíferos, mas todos sabendo que o segundo vive no mar e o segundo é terrestre, embora alguns velhos do mar também sejam agraciados com o nome de lobo-do-mar. No barbeiro, entre um corte de cabelo e outro, recebia revistas em quadrinhos para passar o tempo. Sem os óculos, mal conseguia ler e apenas ficava observando as figuras, demorando a cada página, para que não notassem sua dificuldade em enxergar as letrinhas.
Com o tempo os gibis perderam a graça, mesmo que na adolescência tenha recebido uns mais modernos e violentos, que os amigos emprestavam. Foi na religião que começaram as primeiras leituras mais densas. A bíblia era instrumentalizada e servia para criar suas redações, que as pessoas aplaudiam. Inventa histórias que não tinha vivido e de mentiroso, pensou mais tarde que isso poderia se tornar uma boa forma de escrever, já que o escritor é antes de tudo um mentiroso. Mas seria muita pretensão acreditar-se um. No fim da infância, o desejo era a busca pelas leituras chamadas pagãs, os antigos livros celtas, a cultura egípcia, com o fascínio das pirâmides. As lendas fascinantes e uma mitologia bem mais fértil que as de agora. Os primeiros contatos com a grande transformação, a Filosofia, ainda desconhecida no nome e adorada quando defrontada em leituras. A bruxaria acabou revelando certos mistérios, e sentia-se no mundo da escrita como que embrenhado nos mistério de Elêusis.
A maturidade veio com o propósito de adquirir um exemplar com seus próprios recursos. Não mais singelas doações ou empréstimos. Agora era de sua escolha. E foi um grande nome que acabava sempre voltando para confrontar sua realidade, Nietzsche. A compra da obra “Além do Bem e do Mal”, fazendo com que grifasse quase a obra inteira. A Filosofia agora mais viva e o desejo pelo que os livros forneciam, que eram mais dúvidas e novos formas de se ver diante do mundo. Cada novo descoberta vinha em forma de conceito, palavra, frase, capítulo, parágrafo. Os autores vinham com sua marcante personalidade de escrita e as formas de mostrar novas fórmulas. Alguns, insuportáveis, Graciliano Ramos já não era mais odiado. Os estrangeiros vieram primeiro e depois os nacionais. Foi na faculdade que a quase compulsão se tornou mais forte. Mas antes, o hábito de andar pelas ruas, sempre com um exemplar embaixo do braço. Os primeiros ônibus perdidos ao perder a atenção em um Dostoievski enquanto aguardava no ponto. Dentro do coletivo, o sacolejo não fazia com que desviasse a atenção. A pessoa que senta ao lado e o leve gesto de virar a cabeça e tentar enxergar o que é lido, ou mesmo puxar uma conversa para perguntar do que se trata o livro.
A técnica mais difícil foi caminhar. Os olhos atentos nas linhas, buscando as palavras. Os acidentes de relevo no caminho, as pessoas e carros, um sentido renegado até certo ponto e outros, como um cego diante das letras, mais apurados. Andava pela rua, percebendo as pessoas como sombra e desviava delas. Muitas, quando próximas a uma travessia pensavam em parar para que o leitor não trombasse com elas. Se espantando, ao ver que o sujeito que lia parava antes e erguia o rosto, dando um sorriso cordial e dizendo que a outra pessoa passasse. Na universidade, a biblioteca repleta de exemplares que desejava e não poderia adquirir com os próprios recursos financeiros, o tempo se tornou escasso e cada momento era motivo para uma leitura. Nas filas dos supermercados, entre um atendimento e outro no local de trabalho e longe dos olhares do patrão, que não tolera funcionário esperto. Li antes, durante e depois das aulas, quando se reuniam para fazer trabalhos em grupo. Os colegas de turma questionavam, já que lia o que fugia ao tema estudado e uma professora, uma vez disse, orgulhosa: “Nunca deixe de ler o que lhe agrada.”.
O banco de trás de um automóvel pode ser ótimo, como a poltrona de um ônibus de turismo, mas nada como um bom sofá em casa, onde possa cruzar as pernas e esquecer do tempo. Deito na cama, embora isso facilite o sono. As pessoas curiosas, faziam suas deduções, indagavam e umas mais ousadas, perguntavam. O mundo concentrado em Platão, reforçado pela firmeza de um Hobsbawm, desmistificado, violentado, adulterado, emocionado. O poder de simplificar assuntos complexos em uma frase, eis Machado de Assis e suas sentenças brilhantes. O conhecimento realmente é poder, desde a constatação dos antigos mistérios de Ísis, por isso a rebeldia de certos autores em castigar qualquer leitura que seja diferente daquilo que professam. Na academia os professores tinham seus próprios gostos e cada um de nós precisa criar o seu. O tempo não conseguiu destruir o poder que a arte tem de atravessar os séculos, em escritas que ainda nos fazem sair desse estado de conformismo. Para muitos a revelação pode vir da religião, mas aqui o desvelar ocorre nas escritas, como se fossem trilhas que deixam as pessoas usarem na construção de seu próprio percurso.
Os exemplares, alguns de bolso e outros enormes, eram carregados e protegidos da chuva e outros acidentes. A estante de casa começava a ganhar vida, com obras lidas e pequenos trechos guardados a espera de novas revelações. O livro não é uma fuga e sim uma nova forma de viver. Vamos percebendo e passamos a ser percebidos pelas palavras, fazendo com que tenhamos certa maturidade literária, abrindo espaço para leituras mais herméticas, como se tivéssemos sendo iniciados em algo que forma uma parceria com nossa percepção. O hábito das palavras faz com que possam ser instrumento de nossa vontade, claro que algo delas foge a nosso controle, mas uma boa parcela é articulada, e o magister, poderá criar novas impressões com sua magia, ou hermenêutica. A coerência da interpretação vem dessa parte passiva de articulação, que faz com que possamos traçar linhas paralelas e perseguir um sentido. A escrita fez com que a produção textual ganhasse mais corpo, contribuindo com o lido e fornecendo leituras.
A própria internet não conseguiu frear o impulso pela leitura. Uma digitação e os olhos nas páginas, como o pai fazia diante da televisão. Após a retirada da carta de trânsito, os percursos decorados e o tempo dos semáforos, entre um farol e outro, o livro, ao lado, em cima do porta-luvas, aberto e lido. Nas salas de aula, lecionando, entre os intervalos, mais leituras. A esposa, também amável diante da leitura e o hábito duplo de ler, fazer amor entre livros, com frases criadas e citadas. Os volumes se avolumam e as leituras são confrontadas em uma relação que cruza os sentidos. O gato surge e fica no braço, disputando a atenção diante dos olhos fixos nos livros. Segue andando com seu livro embaixo do braço, o pai visita e cada um ocupa um sofá. Sabe que ali estão mais que simples objetos. O leitor segue, sabendo que sua leitura vai além das páginas de papel e consegue vislumbrar o livro da vida, que o tempo devassa e que cada um nós pertence. Como figuras enigmáticas e mágicas, que irão formar essa hermenêutica da História ou mesmo da Arte, que extravasa a compreensão do homem e gravando-se nesse mundo, que é mais uma esfera desse espaço além, de tantas grafias.