Velório
No velório, as pessoas se aglomeram. Desejam ver logo o defunto, que esta firma em sua posição de morto. Os olhos foram fechados e as moscas começam a percorrer o recinto. Dizem que por causa das flores. Mas a carne em decomposição, o formol não dá conta. Em alguns dias quentes alguns conseguem perceber escorrer o líquido das narinas do morto, o que explica a providência dos algodões bem aprofundados no nariz dos cadáveres. As pessoas começam vindo devagar e logo se avolumam no local onde os caixões estão posicionados. Aliás, alguns dizem urna. Talvez para ficar mais chique. Se for assim, digam que o meu, quando eu bater as botas, seja logo um esquife. Quero ver se faço a viagem direito. Depositem minha moeda que preciso ter uma boa conversa com Caronte. Antes imaginava que o algodão era para o morto não sentir o próprio cheiro, embora alguns o perfumem.
As velas são mesmo algo fascinante. Vão queimando a noite inteira. Quase que dá para associar a palavra velório com vela. Velório parece o nome de uma quantidade grande de velas. E já que o vigiar é a função, acredito que as velas serão vigiadas a noite toda. Se apagam, acendem mais uma porção. Em algumas ocasiões, com aqueles panos de renda de coisas do tipo, devem já ter incendiado algum defunto com esse monte de velas. Um hábito mais católico. Fico vendo aqueles senhores com véu na cabeça, indo fazer suas orações. Acho que o morto, se estiver ainda ali, pede para ser despachado logo. Se já foi, agradece não mais precisar participar daquela chatice. Uma cantoria e rezaria sem fim. Quase que dá pra fazer o sujeito voltar e ainda indignado. Tem caso que a pessoa volta e os vivos em vez de agradecer, saem correndo de medo. Mais vale o medo do morto do que a volta do vivo querido.
Alguns choros são insuportáveis. A pessoa grita e descabela. Outros sussurram e tem aqueles que parecem um soluço. O abraço que é compartilhado, bem como os pesares. Os pêsames é nossa forma de dizer que também estamos pesados com aquela dor e tentamos aliviar o fardo daquele que está mais ligado ao defunto. Em outros tempos a coisa era bem mais animada. Serviam bebida e saíam trocando as pernas para conduzir o caixão. Fora a comilança. Hoje mal servem um cafezinho e algo para enganar o estômago na madrugada, que é longa. Um lugar sem televisão ou alguma distração. Sorte de quem tem hábito de leitura. O cemitério é um ótimo lugar para ler. Tranqüilo e com bastante local confortável para sentar, cruzar as pernas e abrir um bom livro. Chega inspira. Vejo um cemitério e logo fico com vontade de ler. A madrugada vai passando e algumas pessoas resolvem fazer alguma piada entre alguns grupos mais afastados. Existe um respeito em relação ao ponto exato onde fica o defunto. As brincadeiras vão ficando escassas ali. Também existem alguns momentos-picos, como a ida para a cova que pede menos zombarias.
As pessoas são avisadas e começam a surgir. Você encontra parentes, que não via há bastante tempo. Sempre tem aqueles que não conhecemos e mesmo assim cumprimentos, num gesto maquinal. O círculo é formado ao redor do morto. Certos visitantes gostam de tocar, não se sabe por crença religiosa, intimidade ou curiosidade. Os olhares costumam cair sobre a família. Buscam julgar a reação. Se chora muito, acham que fico com débito em relação ao morto. Se chora pouco, dizem que não tem sentimentos. Precisa ter uma medida exata das lágrimas. Outra coisa importante, que não vem de agora, é ter ido no enterro alheio. Quem vai no enterro dos outros, tem gente no seu enterro. É um dever de quem já teve esse mesmo serviço prestado por outro. O hábito de roupas pretas, perdeu um pouco a tradição, mas ainda é a cor que predomina. Alguns usam óculos escuros para dar aquele ar de filme ou novela.
Chega o momento do cortejo. Vão seguindo o caixão, a pé, embaixo de sol ou chuva. Algumas cidades do interior, ainda mantêm o hábito de uma carreata ir seguindo o carro da funerária até o cemitério, ainda mais se for pessoa com posição social considerada elevada. Chegam até a cova, onde os coveiros estão prontos para cumprir sua obrigação. Vez ou outra alguém quer ir junto e acaba às vezes o pé vacilando e caindo dentro do buraco. Volta erguida e arrependida do feito desastrado. Chamam alguém para fazer um breve discurso, mas alguns se empolgam e alongam a fala. O caixão preso em roldanas e sendo abaixado. O último contato visual com aquele corpo. O pranto costuma ser despejado com mais força nessa hora. A terra jogada por cima e as pessoas saem, já que o dever foi cumprido. Os visitantes voltam para suas casas, já os familiares retornam portando uma ausência, que se instala na casa de pessoa falecida. O momento de luto da família, que consiste em superar a falta.
O ciclo de morte continua. Afinal de contas, gera bastante renda. Compra-se túmulo, caixão, flores, velas, entre outras coisas. Se é casado precisa mudar no cartório para viúvo, se tem bens precisa ver testamento e fazer inventário. Burocracias que nem a cova escapa. Escapa apenas quem vai para a cova. Quem fica precisa organizar as coisas. O enterro também é um evento social, onde são avaliadas diversas coisas. A roupa, o modo de agir, o que foi dito, o quanto contribuiu em auxílio dos que sofrem a perda. Enterro e velório se misturam, um vindo ligado ao outro, como formas de reverenciar o morto, o que representa todo um aparato simbólico que envolve a reputação dos vivos perante a sociedade. O morto se torna um signo, a ele são atribuídos significados. Contam histórias de sua vida, a memória resgata a ação da pessoa em vida, para ali fazer parte de um ritual, com intuito de tornar o defunto um ícone. Variam as tradições conforme a moral de cada época, mas o ato de enterrar os mortos é uma das características atribuídas à humanidade. Uma coisa da qual nenhum de nós vai escapar, seja de uma forma ou de outra.