QUASE UM CASO DE AMOR
Os passos daquela mulher eram lentos, marcados por pernas que se esfregavam sensuais por debaixo da saia de sêda, enquanto caminhava pela rua. O olhar de Agenor passeou por aquele corpo moreno mais uma vez e cobiçou cada centímetro dele. Gilda, porém, indiferente, continuou a caminhar, jogando os cabelos para trás. Passou, deixando um rastro de perfume inebriante, que foi captado por ele, sem demora.
Agenor sonhava com Gilda todas as noites e, em seus sonhos, a tinha nos braços, suplicante. A jovem viúva, que caminhava em frente à sua loja de armarinhos todos os dias, lhe instigava as mais belas fantasias, porém, ela nem sabia disso. A simples imagem de sua deusa a passar pela rua, desfilando sua beleza e sensualidade, traziam àquele homem lembranças primaveris de sua mocidade, quando era igualmente cobiçado pelas moças da sociedade paulista. Agora, trinta anos mais velho que aquela mulher, sabia ser quase impossível uma aproximação. Bastava-lhe, então, sonhar com ela e vislumbrar sua figura a passar pela rua, à frente de sua loja, de onde era espectador silencioso de todos os seus gestos.
Depois de vê-la passar, voltava ao trabalho e à sua realidade cheia de compromissos e tarefas. O trabalho consumia-lhe o tempo e a energia, mas era mais do que sustento, era a fuga de seu casamento. Vanda, sua esposa, há muito perdera o encanto. Todavia, apesar da frieza do relacionamento, a respeitava por ter-lhe dado três filhas, que já não moravam mais com eles. Agenor via-se obrigado a compartilhar sua vida com aquela mulher que deixara de ser companheira íntima, para ser nada mais do que uma presença dentro de casa, a quem via-se atado pelo resto de seus dias.
Gilda vinha resgatar um fogo qualquer, trazer-lhe um resto de vida, fazendo seu coração bater vivo dentro do corpo esquecido de sí mesmo. Era natural que sonhasse com ela e lhe cobiçasse de tal maneira e por tantos meses.
Uma tarde em que Gilda, inesperadamente, entrou na loja de Agenor, o homem estremeceu. Ela foi entrando com graça, esboçando um sorriso meigo em seus lábios carnudos, enquanto ele, extasiado, esqueceu-se do que falava a um de seus funcionários, cortando a frase pela metade e tendo olhos somente para a dama que se aproximava.
- Boa tarde, o senhor teria lã para tricô? – perguntou Gilda com seu jeito de menina.
- Boa... boa... tarde. – gaguejou Agenor, quase incrédulo. – Lã? Disseste lã?
- Pois sim, disse lã. O senhor tem?
- Claro... claro que tenho, me acompanhe!
Agenor encaminhou sua cliente ao outro lado da loja, onde mostrou prateleiras de lãs de toda côr. Gilda aproximou-se, olhou bem, foi escolhendo algumas em tons pastéis e dizendo:
- Vou fazer um cachecol para o inverno...
Agenor mal acreditava que Gilda estivesse ali em sua loja e dirigindo a ele suas palavras, verdadeiras preces angelicais. Ele limitava-se a adorá-la, em silêncio, observando seus movimentos delicados, tomado por uma súbita timidez que disfarçava a excitação a revirar-lhe as entranhas.
Gilda escolheu todas as lãs que queria e se dirigiu ao caixa. Agenor cobrou-lhe o preço dos produtos e deu-lhe uma a mais como brinde.
- Para que voltes aqui mais vezes. – justificou-se, depressa, pelo mimo.
- Obrigada, senhor. Voltarei, com certeza. – retrucou Gilda, divertida.
Agenor ainda se viu tonto por muitas horas depois que Gilda saiu da loja. Sentia-se emocionado demais por ter tido um contato pessoal com a sua musa, até então, uma visão a passar pela rua, vítima indiferente de uma louca adoração. Pelo resto da tarde, não teve outros pensamentos.
Passados dois dias, Gilda volta à loja, em busca de linhas e agulhas, fazendo com que Agenor se embriagasse novamente em sua beleza. Desta vez, ele lhe deu um lenço de sêda.
- Aceite este singelo brinde da casa! – disse Agenor, com olhos interessados.
A jovem viúva aceitou o fino acessório, lisonjeada.
Assim, Gilda passou a vir à loja com mais frequência e, cada vez que vinha, recebia, com carinho, um presente de Agenor, até o dia em que o homem tomou coragem e arriscou uma conversa.
- Dona Gilda, sei que és viúva e tão jovem... Deves sentir-se mui sozinha!
- Sim, Senhor Agenor, a vida me é dura... – respondeu Gilda, perdida em pensamentos.
- Aceitarias uma xícara de café em minha companhia? Não se preocupe! Quero ser-lhe amigo e só isso.
O convite pegou a jovem de surpresa, mas, na pressa de responder, não viu maldade nele.
- Eu... aceito vosso convite.
Assim, naquela mesma tade, Agenor e Gilda encontraram-se numa lanchonete para um café. Tiveram, então, a oportunidade de conversar sobre suas vidas e se conhecerem melhor.
Agenor ganhara nova vida com a amizade que nasceu naquele dia e outras tardes vieram em que se encontraram para um café na mesma lanchonete. Aos poucos, se viu ouvindo os anseios e esperanças de Gilda, uma jovem que vivia de costuras e de lembranças do falecido marido. Mas a amizade o levava a delírios... Queria mais do que a simples amizade, queria abraçar aquela mulher, sentir seu corpo delicado, explodir suas emoções, como há muito tempo não fazia, ou talvez nunca tivesse feito.
Dessa maneira, decidido, fechou a loja numa determinada noite, repetiu para sí frases que memorizou diante do espelho por muitos dias, comprou um ramalhete de flores e dirigiu-se à casa de Gilda, trêmulo de emoção, antevendo cenas de amor e intimidade, que borbulhavam em sua mente preenchida de Gilda há muito tempo, cujas cenas mentais enrijeciam seus músculos mais íntimos, levando-o à loucura. Caminhou pelas ruas da pequena cidade, subiu uma ladeira, desceu outra, cruzou três quarteirões e parou diante do portão da casa daquela que tinha a posse de seu coração.
Num segundo, pensou em Vanda. Reviveu seu casamento, o nascimento das três filhas e alguns outros poucos momentos de felicidade. Todavia, no segundo seguinte, lembrou-se da frieza com que era tratado, da rotina de seus dias vazios de sentido e da falta de interesse de sua mulher por tudo o que dizia respeito a ele. Livrou-se, então, de qualquer culpa, respirou fundo, procurando controlar o coração que batia acelerado, e abriu o portão, segurando as belas flores diantes de sí. Chegando-se à porta, tocou a campainha, nervoso.
Alguns poucos minutos se passaram... eternos. Gilda abre a porta, cabelos soltos, revoltos, e vestindo um roupão de sêda vermelho.
- Seu Agenor... que surpresa...
- Gilda, como vai? Eu... eu trouxe isto pra você...
Gilda estendeu as mãos e apanhou as flores, com delicadeza.
- São lindas, mas... por que? – a jovem viúva carregava inocência em suas palavras.
- Porque... porque... – tentava responder Agenor, com o pensamento frenético a buscar as frases memorizadas, perdidas de vez, e tudo o que vinha em mente era que amava aquela mulher com todas as forças de sua alma e a queria mais do que tudo na vida. Antes que pudesse continuar, porém, eis que surje, por detrás de sua amada, uma pessoa indevida e inesperada. Marcos, o dono da lanchonete onde tantas vezes o casal tomou café junto, com os cabelos assanhados, sem camisa e sem sapatos, aproximou-se, um tanto resoluto.
- Boa noite, Seu Agenor! – disse o rapaz.
- Este é o Marcos, da lanchonete, o senhor o conhece? – perguntou Gilda, um tanto constrangida.
- Sim... sim... lembro-me agora... Como vai?
- O senhor ía dizendo... – falou Gilda.
- Nada, nada. – respondeu Agenor, engolindo em sêco. – Só estava de passagem e achei que iria gostar das flores.
- São lindas, de fato! – disse Gilda. – Vou já colocá-las num vaso.
- Passem bem, então, e... boa noite – finalizou Agenor.
- Gostarias de uma xícara de café? – Gilda tentava ser agradável e retribuir o agrado.
- Não, não... tenho de ir.
Agenor deu as costas para o casal e ouviu a porta fechar-se atrás de sí. Perdido, saiu pelas ruas, sem rumo, buscando motivos para ir para casa ou qualquer outro lugar que fôsse. Na mente, Marcos era a lembrança viva. Jovem, musculoso e belo, tantas vezes tendo visto Agenor e Gilda em sua lanchonete, com certeza preparou o momento exato de atacar a prêsa indefesa e ela, com certeza, deixou-se atacar.
Agenor sentia-se pequeno e fragilizado ao pensar que não passava de um homem de cabelos embranquecidos, de aparência marcada pelo tempo, casado, nada tinha para oferecer àquela linda mulher, no auge de sua mocidade, vibrante de sedução.
- Como pude acreditar que poderia? – ía perguntando a sí mesmo pelas ruas.
Sem se dar conta, estava de volta à loja de armarinhos. Abriu a porta e entrou, às escuras. Caminhou, um tanto cabaleante, rumo aos fundos do grande recinto. O reflexo rápido da luz da rua que vazava por uma janela pareceu refletir o brilho de uma lágrima furtiva. Agenor foi ao balcão próximo ao caixa. Abriu uma gaveta, devagar. Apanhou o que tinha dentro, uma peça escura e pesada. Ofegante, encostou a tal peça em sua própria cabeça e... disparou o que se tratava ser um revólver. Seu corpo tombou com estrondo para trás e nem viu, o pobre, o sangue que encharcava o chão recém-encerado de sua loja. O mundo encerrou-se para ele numa escuridão repentina e seu fôlego exauriu-se num falso alívio para a sua dôr.
Agenor deixou-se morrer, pois que sua vida acabara-se de qualquer maneira. Levou consigo o amor que tinha por aquela mulher, último a pulsar em seu coracão. Levou, também, o sonho de ser feliz novamente naquela sua vida medíocre, esperança que era a razão para viver.