Trago

Ah sim. Esse cotidiano de todos os dias. Redundância. Talvez seja. Esses farrapos de assujeitados que se sentem sujeitos, decorando as habitações de uma metrópole imunda. A higiene só vai até certo ponto, basta esbarrar nas expressões duras e gestos violentos. Ontem seria quase como hoje, se não fosse passado, que se faz esquecido e deixado para trás. O hoje é uma sombra que devora cada um dos que pressentem sua presença maligna. Um trago ajuda a se matar. Vários goles que entorpecem a mente cansada. É uma fadiga que já nasce conosco. Nascemos nos perguntando porque. Morremos sem termos respondido a pergunta que fizemos ao nascer. Foda-se isso tudo. A realidade não presta, porque esmaga seus filhos. O real é aquele força opressora que faz faltar a comida na mesa e enche o peito de angústia. Lobos em luta. Algo hobbesiano.

Na televisão, as notícias de mortes banais. Anúncios de inflação. Toda essa droga para desesperar os prisioneiros do sistema. Liberdade é dar um tiro na cara, apodrecendo em plena luz do dia, nauseando os bons cidadãos. Gente de merda. Tomar um pileque em festas burguesas, não passa de cretinice. Quem tem a coragem de se embebedar de verdade, ficando entregue às calçadas, disputando espaço com cães de rua. Poucos se entregam ao vício de forma consciente. Os viciados perambulam, mais mortos do que vivos. Aquele alcoólatra de bar de filme norte-americano, sentado ao lado de alguém interessante, tendo conversa agradável até perder as forças e desmaiar, parece algo surreal nos dias de hoje. Trocam tiros e matam adolescentes na porta de botecos. A vida nunca valeu grande coisa. Todo emprego é uma cova, que vai exaurindo forças e matando o orgulho. Patrão é uma bosta, se achando melhor, por empregar, ou seja, subordinar a seu mando.

A garrafa embaixo da axila. Um bom gole, limpando a boca na manga da camisa. Que se dane a etiqueta. As madames esticam a cara, para esconder sua feição macabra. O desprezível não é o dinheiro, mas quem o utiliza, servindo-se dele como desculpa para sua própria ignomínia. Nada como receber esses trocados de esmola, que caem de mãos que se consideram santas. É a benevolência canalha, dos que desejam a eternidade. No fim, a terra é pra todos os vermes. O cadáver é banalizado, com aqueles rostos podres assassinados. Quanto se pode obter no lixo. São alimentos prontos para o consumo dos famintos, bem como objetos intactos. O cheiro é ruim, mas existe tanta coisa chique que fede e nem por isso deixam de engolir. A feira distribui em maior quantidade, com suas caixas e mercadorias que apodrecem com mais facilidade. As nobres família, olham com nojo para o indigente que vasculha o lixo de mãos limpas. Que horror em pensar naqueles rabos sebosos, deitados em suas camas macias, com as mentes poluídas.

As crianças gordas, bonachonas. Os senhores com ar superior, brigando feito um amador pugilista, por um preço errado na nota fiscal ou uma fechada no trânsito. As madames, com seus rabos elegantes, apostam na estética das plásticas e dos cosméticos. Tudo para conseguir aquela pica de ouro dos seus sonhos, que não passa de um cafetão mais discreto, que irá usá-la como qualquer outra puta que elas fazem questão de menosprezar quando passam por esquinas noturnas. Estudantes ideológicos, que logo perderão sua militância, rendendo-se a caprichos menores. A música que serve de trilha sonora a um momento comercializado. Nas vitrines, manequins assexuados e produtos envidraçados. Os políticos criticados, enquanto a maioria age como qualquer um daqueles que são criticados. A necessidade de um Judas nasce da prática de uma falta de responsabilidade.

Os demônios estão aí, oferecendo seus chifres para quem queira lustrar. Diabos vestidos de santos, prontos a adular os egos feridos e oferecer-lhes o absoluto. No fundo dessa garrafa de bebida, apenas o vidro, que apesar de transparente, não pode ser bebido. Uma ilusão. Talvez por isso exista a tradição de estourar a garrafa, para que não se tenha mais esperança em relação aquele recipiente outrora útil. O cinema é o mundo, basta pararmos um momento e nos tornamos expectadores. Sentado mo meio fio, o trânsito das pessoas é algo tedioso. A alegria do porre é falsa. O que não é falso nesse mundo? A alegria que faz nascer o sorriso mais belo bem como a cólera que cria a expressão mais horrenda, um dia irão se extinguir. Nos aperfeiçoamos em inventar. Mas no fim, de que adianta? Viver é tão amargo e ilusório quanto a bebida. Resta saber quem terá a coragem de se embriagar.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 12/05/2013
Código do texto: T4287372
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