A Miséria

A criança reclama da barriga que dói. Faminta, com os cabelos desgrenhados, sem forças para brincar, fazendo do cotidiano, uma batalha pela sobrevivência. O choro seca, restando apenas uma lamúria. As vestes, rasgadas, expõem uma estrutura magra e de ar doentio. As outras crianças das proximidades, passam por lago semelhante, com seus rostos de miséria e os ossos a flor da pele. Vez o outra visitam um dos vizinhos, quando sabem do velório, é o evento social que todos estão acostumados a freqüentar. Os animais de estimação foram extintos, com pequenas memórias a respeito de tempos com outras companhias. O chão sujo, por não existir mais força que o limpe. Os dentes, fracos, de bocas banguelas, demonstram o grau de descaso. Os pés descalços, as solas calosas, os dedos rachados. Esmagando centímetro por centímetro daquele chão duro.

O pai, descontente com a situação, saíra em busca de auxílio, conseguindo realizar uma proeza. Armado, conseguira assaltar, mas não levar o prêmio para a família, já que morrera baleado na tentativa de fuga. Mais um velório, revestido de fracasso. Chega um momento em que não existe mais certo e errado, o que vale é poder aplacar a dor das entranhas, que reclamam alimento. Alguns se embrenhavam por matagais, servindo a empregadores bizarros, que consomem rapidamente aqueles corpos no corte de cana ou outra ocupação exigente. Costumam ser pagos com alguma comida, que garante uma sobrevida aquelas comunidades. Muitos morrem sob a fúria do sol, outros por algum acidente de trabalho, entre eles, a desistência do corpo diante da forte labuta e por ser abastecido com suprimento alimentar deficiente. Os caminhões passam carregados, levantando poeira, com aqueles rostos endurecidos, cobertos com panos e as mãos armadas de facões.

A mãe, torna-se prostituta, recebendo surras mais do que dinheiro. O sustento foi garantido por algum tempo. Mas a miséria envelhece, a mulher perde logo os dotes, tornando-se feia ara o comércio do corpo. Não mais procurada, acaba se oferecendo por um prato de comida, até o ponto em que a usam de graça e dispensam em seguida, por não representar nada além de um pedaço usado de gente. A mãe escuta o choro, não podendo dar esperança aquelas bocas famintas. Recorda-se daquelas diversas mãos que a tocaram, da forma como foi contaminada, com doenças que se alastram por seu corpo. Tosse diariamente. Esmola pelas ruas, recebendo um ou outro centavo. Nada que garanta algo. Ainda resta uma sobra, que é cozida e o caldo aproveitado. Agora só bebem o caldo, que rende com os acréscimos de água. Diante do espelho, é um trapo, roto.

A menina chora de fome, ao lado do corpo da mãe, que sucumbe diante das mazelas. Acaricia os cabelos da miserável criatura, tentando ressuscitar a única coisa que lhe restava. Agora suas lágrimas saem, ainda que em pouca quantidade. A desnutrição parece secar até o suor. Olha para o teto do barraco, passando os dedos sobre o solo, na tentativa de cavar. Sai pelas ruas, sem destino. Esbarrando em pessoas pelas avenidas. Sentada no chão de uma praça, sentindo as gotas de chuva e se abrigando embaixo de um banco. É um bicho acuado, que apara a chuva com as mãos e bebe em goladas. Rouba a carteira deixada dentro de um veículo, que estava estacionado com os vidros abertos. Entra na pastelaria e oferece o dinheiro, pedindo um salgado. É encontrada e presa pelo dono do veículo, que a chama de pequena ladra. No abrigo infantil, sem dizer uma palavra, é fichada e deixada junto com os outros internos.

Uma detenta. Agora come e tem onde dormir. Apesar das surras diárias, de outras necessidades de sobrevivência. Tocada por outras meninas. Servindo seu corpo a homens adultos, que pagam uma certa quantia aos que administram o lugar. Lembra da mãe, passando a mão sobre a calcinha, após ter sido pela primeira vez forçada a ser penetrada por um homem. A dor foi tão funda que sentiu apertar o peito, apesar do corte ter sido embaixo. Sonha com aquelas imagens de revistas encontradas no lixo. Um dia tencionava ter aquele brilho que vira nos olhares de belas mulheres fotografadas. Seus olhos eram tristes, opacos. Um dia correra uma fuga em massa do reformatório. Resolveu aderir, mas a sua maneira. De que adiante fugir aqui e ser aprisionada ali. Pedindo para participar, recebendo uma lâmina rusticamente presa a uma escova de dentes, tomou a iniciativa. Cortara os pulsos, na frente das outras detentas, que indiferentes, se dirigiram a saída, o mais rápido possível. Seu corpo, pequeno, com uma poça de sangue formada, parecia calmo, sendo encontrado no outro dia, pelos guardas, após invadirem o recinto. Sem nome, sem parentes. Foi noticiado que morrera assassinada pelas outras detentas. Uma curiosidade. Era domingo quando ocorreu esse fato. Dia das mães.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 12/05/2013
Código do texto: T4286790
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