Livros Para Quem Não Sabe Ler

Senta-se. Abre o livro sobre a mesa. As páginas parecem conter algum código secreto. Dedilha as folhas, de forma desleixada, marcando as páginas, com dobras nas extremidades. Não sabe por que marca, já que nunca retorna aos marcos. Talvez seja para impressionar os que o observam, ou para deixar indícios de que esteve por ali. O aroma de mofo, naquelas páginas de um códice encontrado em uma caixa de papelão podre, no fundo da biblioteca. Como podem ler algo assim. No mínimo, sente vontade de espirrar. No máximo, deseja queimar toda essa papelada que considera inútil. Tantos dados nos computadores e essa massa se deteriorando. Recorda-se que os pais não liam, tamanha é a inutilidade desse ritual. Pensa nos colegas, jogando bola, conversando, brigando, paquerando. Ele ali. Parado. Com um volume nas mãos. Sem nenhuma figura para entreter os olhos. Escuta os passos no corredor ao lado, imaginando que poderiam ser seus, em um ato de fuga. O relógio pendurado na parede, segue em ritmo lento. Ponteiros que parecem resistir, retendo a velocidade do tempo.

No sebo, folheia as revistas em quadrinhos, vendo os desenhos, pulando a escrita. Abre algumas revistas jornalísticas, de moda. Tudo besteira. Passa longe da pilha de livros didáticos, se detendo em frente a alguns volumes romanescos. Cada título sem graça. Abre algumas revistas eróticas, mais uma vez, pulando a escrita. O rapaz que se faz de vendedor, pergunta se necessita de algum auxílio. Pede para ver as seções de cinema e música. Filmes antigos e músicas da época dos pais, as da sua época ali encontradas, não satisfazem o seu gosto. Caminha pela calçada, até se aproximar de uma banca de jornais. Observa as imagens das manchetes, lendo o título de uma notícia ou outra. Mais alguns passos e está na farmácia. O encarte, com todas aquelas promoções, passando os olhos sobre os produtos. Se dirige ao banco, apertando teclas no caixa eletrônico, sacando uma pequena quantia. Volta ao sebo, compra uma obra que alguém havia elogiado. Considera um bom negócio, pelo braço baixíssimo. Em casa, deixa o exemplar comprado sobre a mesa de centro, onde fica por meses, pegando poeira e servindo de apoio a seu copo de bebida.

No escritório de advocacia, o sujeito observa mais uma vez o código penal. Entediado, procura os resultados na internet. Encontra modelos processuais parecidos com a argumentação que precisa para utilizar no tribunal. Copia, altera um ou outro parágrafo, montando sua defesa. Acredita na estupidez em se preocupar muito com aquilo, já que o próprio juiz que irá presidir, não costuma se importar muito com a legislação, tendo em vista o último episódio que presenciara. Um promotor jovem, deixara o magistrado embaraçado, ao pronunciar artigos que eram desconhecidos pelo meritíssimo, que não se fazendo de encabulado, acabou acatando ao argumento do rapaz, para não sofrer ainda mais embaraços. Outro dia, em uma discussão de trânsito, após uma infração, intimidara os guardas, mostrando sua credencial e mencionado parágrafos e artigos que nem sequer existem. Mas quem se preocupa em ler o código civil. As pessoas se debruçam sobre as leis, apenas quando é do interesse delas obter alguma vantagem de ordem jurídica.

Em casa, o filho pede um livro ao pai de presente. Que besteira, responde o pai, dizendo que livros não ajudam a aprender uma profissão, melhor seria colocar a mão na massa e ajudá-lo no campo. Esses teóricos, completou o pai, apenas cuidam do rabo deles. O menino, de cabeça baixa, voltou a seus afazeres, deixando a leitura para momentos escolares, ainda que os livros dados na escola, sejam para ele, extremamente chatos. Já adulto, resolveu comprar um livro para si. Escolheu um com capa bem brilhante e título explosivo na livraria principal da cidade. Aceitou pagar em duas vezes, por conta de condições financeiras limitadas. Chegando em casa, mal cumprimentou a esposa, abrindo o livro e começando a ler. Era algo a respeito de desenvolvimento pessoal e orientação filosófica. Não conseguia passar das primeiras páginas, sentindo sono e desconforto por ficar em uma posição não muito favorável. Em seguida, a cabeça doía e sentiu ódio, desejando atirar o grosso volume pela janela. No fim, deixara o volume enfeitando a estante, indo fazer amor com a esposa. Enquanto transavam, ficava observando o livro, lembrando as palavras do seu falecido pai. Esquecera tudo aquilo e se concentrava nos seios da mulher, que gemia e puxava seu corpo contra o dela. Após gozar, só pensou em descansar e se preparar para mais um dia, já que ainda precisava saudar a segunda parcela da prestação daquela sua aquisição literária.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 08/04/2013
Código do texto: T4229560
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