Sobre as Sobras

Abre o peito, fechado para os sentimentos. Pela dor que abriga o estômago, mas parece irradiar para o coração. A voz fraqueja, pela tragédia da fome que fala, em um suspiro mudo, que é agonia que entorpece a mente. Talvez seja preciso roubar. Violentar um outro para que sobreviva. Triste realidade. Enamorado pelas sobras que um casal deixara no restaurante, esgueirando-se para não ser surpreendido, já que as mesas, expostas nas calçadas, são vigiadas por funcionários assalariados. Não é culpa deles, nem minha, talvez seja nossa. Consigo roubar o prato de plástico. Saio para um canto de rua, comendo aqueles grãos de arroz com molho de tomate, passando os dedos e lambendo-os. Consigo ainda roer os pequenos ossos, sugando o tutano. Um cão me observa, mas não consigo deixar-lhe nada. Mas em outras ocasiões, acredito que ele tenha recebido algo e eu não, é a lei da sobrevivência, sendo cada um por si. O homem não é o lobo do homem, mas sim o cão.

Ainda sonho com aquela dose da semana passada. O aguardente era forte, logo fiquei de pileque, a dor no estômago até parou por algumas horas. Saboreando o álcool. O cheiro dos churrasquinhos, preparados nos açougues e os olhares raivosos dos clientes, me enxotando com as mãos, como fazemos com as moscas que no incomodam. Talvez seja minha aparência deselegante, o forte odor de suor e sujeira. A chuva é meu chuveiro natural, onde deito e rolo, tomando goles, amparando as gotas com as mãos. As pancadas dos cassetetes nas costas, ao deitar embaixo de alguma marquise. O sol fazendo doer os olhos, como um despertador visual, que queima e embaça as vistas. Destituído dos sentimentos que as pessoas tanto exaltam, já que só consigo processar as necessidades. Comer, beber, dormir, mijar e cagar. A masturbação deixou de ser atrativa. Menos libidinoso e mais esfomeado. Furtando copos com restos, para aplacar a necessidade de embriagar. A religião só é boa, quando trazem aqueles pratos de comida. Mas me privam do álcool, me trazendo culpa e angústia. já tenho meus próprios demônios.

Com a cabeça próxima ao bueiro, vejo baratas transitando, algumas passam pelo meu corpo. Olhos espreitam, devem ser de algum rato. Seria capaz de comê-lo, mas não tenho ânimo para persegui-lo. O pano cobre o corpo, não por frio, mas para uma ideia de proteção. Antes de pegar no sono, enxergo apenas pés, com diferentes modelos de calçados. Mas se levanto e encaro os rostos, as faces se viram, ou recebo aquele olhar duro, com um balançar de cabeça, em forma de negação. Algum dia, devo ter feito parte de uma família, mas nada sobrou de lembrança. Minha certeza está, no fato de saber que não vemos ao mundo do nada. Um achado. Na mureta próxima a calçada, um maço de cigarros, com dois cigarros intactos dentro. Peço fogo a um rapaz que passa fumando, ele prossegue e me ignora. O próximo, encosta a ponta do seu cigarro no meu, enquanto trago e solto as primeiras baforadas. Rindo com um aceno de cabeça e uma risada com poucos dentes sujos e amarelados. Trago devagar, provando o gosto da nicotina, soltando a fumaça, dando algumas tossidas. Logo em seguida acendo o outro, aproveitando o fogo. É o meu momento.

Poderia me atirar na frente de algum desses carros. Mas não é o momento. Aguardo o fluxo diminuir e atravesso a avenida. Sento na escadaria da igreja e estendo a mão. Alguns me deixam algumas moedas. Vou até o próximo bar e compro algumas doses. Volto a sentir aquela leveza. Um homem idoso, me oferece mais bebida, saio de lá trocando as pernas. Sento no meio fio. Começo a achar engraçados os pés, que vejo passar, com aquela variedade de calçados. Sinto um vento frio que arrepia os pelos e os primeiros pingos de chuva, que cai forte, encharcando. Bebo da água que escorre sobre meu corpo, feito um pequeno rio, engasgando e tossindo. Mãos me agarram e me colocam em um patamar mais alto. Um falatório. Depois de um bom tempo, uma sirene, mãos me colocando sobre um maca e dentro de uma ambulância. Sigo até o hospital, onde desmaio, acordando em um leito, com soro intravenoso. Outros pacientes ao lado. olho o teto. Uma enfermeira entra, me olha rapidamente e sai. Arranco o soro, o sangue escorre. Vou escorando na parede até o corredor vazio, sentando no piso gelado e aguardando que venha alguém brigar comigo. Ninguém aparece. Fico ali sentado, esfriando, contando quantas vezes a luz da campainha de emergência pisca. Dá para perceber que é noite. Por isso, fecho os olhos e durmo.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 09/03/2013
Código do texto: T4179655
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