Quase Àquela Hora
Na casa pequena, de cômodos rachados, a conta de aluguel sobre a bancada da cozinha. Uma cerveja na mão e um prato com nachos. O burrito, deixado ao lado, com o molho de pimenta que fede, por estar sobre a mesa desde a semana passada. A tv ligada, com uma programação deprimente, onde um locutor exibe seus conhecimentos a respeito de rebanho bovino. É cedo, e isso serve de café da manhã. Na poltrona, o livro com os poemas de Rimbaud, lido pela metade, marcado com a nota fiscal da compra feita na mercearia. O som da discussão dos vizinhos. A porta da sala, com aquele problema na fechadura, tendo que puxar antes de rodar a chave. Os sapatos, já furados, escorados na parede, como se tentasse caminhar por ela. No banheiro, os pelos se acumulam no ralo. O som do telefone tocando, que vem da tv, pela falta desse tipo de aparelho. O celular, sem crédito, dificilmente recebe alguma chamada, apenas os avisos de cancelamento do chip, caso não compre mais créditos para ligações.
Todo dia se parece com domingo. A luz cortada, vivendo sob a escuridão, bebendo água em temperatura morna em dia de calor exagerado. Os bares são o refúgio. Essa talvez seja a última cerveja, já que a fonte de renda foi pelos ares. As teias de aranha se multiplicam. É possível observar as aranhas em seu trabalho de caça. Perfeito como, estrategicamente, colocam sua teia quase imperceptível, pegando insetos azarados, que lutam inutilmente. Até que a voraz predadora, embala seus corpos para depois sugar-lhes a essência. Bebo mais um gole, enquanto observo o árduo trabalho. A tv que escuto, é a dos vizinhos. As paredes me permitem ouvir o noticiário, quando está silenciosa a residência, ou seja, pela manhã, quando apenas um dos familiares se encontra em casa. Vez ou outra prefere ouvir umas músicas desagradáveis. Também me informo com as pessoas pela rua, que adoro compartilhar as manchetes, para demonstrarem que são bem informadas. Uma barata se tornou companheira de casa, provando sempre os restos de alimento que abandono pelos cômodos. Está crescendo, vez ou outra arrisca um vôo, não me incomoda.
Andando o dia todo nu pela casa, com o pênis balançando entre as pernas, feito um badalo de sino, que roça os pelos das coxas. Pensa sobre os familiares quase esquecidos. Uma cerveja nem deixa de pileque. Daí a necessidade dos comprimidos encontrados. Sobras de remédio deixadas pelos armários do banheiro, bem como a garrafa de álcool etílico. O estômago dói. Pouco importa. É quase àquela hora. Nem mais o gás resistiu à pobreza, pois foi todo consumido, restando apenas o botijão vazio. Saio de casa, sem esquecer de puxar a porta da sala, para que consiga trancá-la, duas voltas. Caminho pela rua atravessando o terreno baldio. Local onde as pessoas não costumam vir, pelo medo de assalto. Observo o trilho, já vejo o trem, vindo ao longe. Mais um olhar sobre o bairro, enxergando de longe a casa. Esse mês, não será mais pago o aluguel e infelizmente, não beberei mais nenhuma cerveja. Espero até o último instante em que o trem se aproxima, pois é impossível freira a tempo. Deito sobre o trilho, acendo um cigarro amarrotado, o último do maço. Solto a fumaça, feito a chaminé do trem. Fecho os olhos e aguardo a hora esperada.