Maria

Virando sua roupa estendida no sol que castiga as tardes. Pouca roupa é verdade. Mas com carinho se desdobra, já que é isso que conforta, por cobrir os corpos magros, tanto delam, quanto dos filhos e marido. A família não é das maiores, como outrora de seus pais, com irmãos esquecidos, perdidos por esse mundo. Sua casa é pequenina, com tudo arrumado, os objetos, seguindo uma certa organização. O chão de terra batida, onde pés cansados, transitam incessantemente, vai dia e vem dia. Fuma seu cigarro de palha, com suas mãos calejadas e enrugadas. Mãos grossas de trabalho duro. Antes roçava, agora se dedica mais ao lar. Os olhos brilham ao conversam, emocionando quem escuta seus casos. Cuida dos cachorros, que comem as sobras do pouco que é consumido, sendo jogado no terreno os resíduos. a disputa há tempos atrás, era com as galinhas, mas a fome e escassez de recursos, fizeram com que se matasse e cozinhasse as aves. Não precisou do marido para isso. Segurava e sangrava. Depois preparava com os temperos colhidos da horta miserável.

Acorda junto com o marido, que levanta mais cedo que o sol e antes do canto do galo vizinho. Prepara um café ralo, com um pouco de pó que sobrara da última compra. O coador de pano, já esburacado, ainda passa o líquido que vai esquentar e servir de primeira refeição ao trabalhador, que pega uma beirada de pão passada e molha, mordiscando durante o trajeto de despedida. Em casa, observa os filhos, deitados no cômodo apertado, os corpos crescendo a cada dia, logo faltará espaço. Companheiras diante da batalha diária. Casados em cerimônia civil, sem recursos, com um pároco amigo que lhes veio abençoar. Já carregando na barriga um dos filhos. O drama de saber se o bebê vingaria, se conseguiria manter aqueles três, sem saber que logo viria um quarto e posteriormente um quinto. Parto feito por parteira das redondezas, com água quente em bacias, panos torcidos, sangue se alastrando porta afora. Todos os filhos nascidos com saúde, fortes, o que fez com que cedo já se dispusessem a auxiliar nos trabalhos.

O estudo sempre fora algo longe de sua realidade, ainda luta para que os filhos possam ter outro destino. Ainda se recorda de ter aprendido as primeiras palavras, ensinada na casa de uma patroa, com filha professora, que se dedicava em horas que coincidia estar em casa, transmitir algum conhecimento letrado a empregada dedicada. Sua mão era forte, ágil, fazendo com que fosse elogiada pela forma como limpava uma casa, lavava uma roupa, fazia uma comida. Uma vez se surpreendeu. Estava gripada, uma senhora de uma das casas em que trabalhava, lhe tocou a cabeça, quase um cafuné. Não conhecia esse tipo de carinho, tendo somente os agrados do marido quando desejava satisfazer as vontades dele. Fazia nos filhos, mas nunca se recordara de alguém ter retribuído. Não chorava, por ser endurecida demais para isso. Mas sua expressão de dor, em momentos difíceis, fazia com que outros chorasse, por ela. Cuidava as crianças dos outros, com seus filhos largados, brincando no quintal de terra e correndo atrás de bichos na vizinhança.

Sua sabedoria era conhecida. Administrava diversos remédios caseiros, sendo procurada até por gente estudada, quando alguém era acometido com algum malefício que o médico desenganava. Era benzedeira de mão cheia, com seus galhos de arruda e a força nas orações que dizia de olhos fechados e face voltada para o alto. Já fazia tempo que não mais menstruava, ainda assim, sangrava. Não se dava ao trabalho de ir ao médico. Na pobreza, hospital nunca prestou auxílio, é o que pensamento que vigorava. A pessoa só internava quando não mais ficava de pé, sentindo-se desenganada, indo para morrer. Bebia sua pequena porção de cachaça. Copo pequeno em um só trago de aguardente forte. Observava a paisagem mudar, logo viria a chuva. O céu escuro e o vento soprando com fúria. As crianças já dentro de casa, o marido ainda por vir. Suas mãos no parapeito da janela. A voz fraquinha dizendo, “deixa a chuva vir”. Na boca de poucos dentes, era possível ver que brotava um sorriso. É um dos gestos mais lindos, aquela felicidade que surge da dor, poderiam ter fotografado esse instante. Na tabuleta presa no portão de madeira, a mensagem da placa dizia, “Deus vê tudo”. Talvez ele tenha registrado esse momento.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 02/03/2013
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