Cápsulas

As ruas são as mesmas, embora diferentes. Pedestres se esbarrando. O carro deixado à margem. Pessoas em volta de uma pequena passarela, enquanto embaixo, um ônibus arranhado e amassado. Dizem que correu um acidente. Mas não parece, pela visão do veículo, que tenha sido grave, ainda que consiga enxergar gravidade nos olhares dos curiosos e choro do que parece ser parentes dos passageiros. Chego próximo a uma banca de jornais, com aqueles revistas expondo peitos e bundas, que colocam na frente, para chamar a atenção dos leitores masculinos. A maioria só olha não leva nada, mas ocorre circulação de gente, e quem vê de fora, acredita que o movimento esteja ótimo. Próximo, um bar, com rostos cansados e alcoolizados. Cansados até de beber. O sujeito olha a moça que passa, com traje formal, já tentando desnudar com os olhos, na tentativa de uma colagem com a núncio de revista para público masculino que vira na banca.

Um passo e quase o carro me atropela. Só o espelho retrovisor que tirou um fino do meu braço esquerdo. As faixas de pedestres são mais um alerta do que uma segurança. Dobro a esquina. Na verdade, ela já está dobrada, eu apenas sigo a trajetória da dobra. O dobrado sou eu. Desdobrado ao chegar em casa, abrindo um pacote de salgadinhos e rompendo o lacre de algumas latinhas de cerveja. Com a ponta da camisa, desatarraxo uma smirnoff ice. Um filme no dvd, tv em cima da cadeira. Uma bela mulher ao lado, com comentários ótimos. Nada como uma mulher inteligente e bonita. Não se pode prender somente a estética, é preciso poder conversar e se divertir. O som do carro saindo a toda velocidade. A estrada reta. O velocímetro marca 80, 100, 120, 140, 160 km/h. O som do vento, nem permite escutar a música que toca no rádio. Vou cantarolando. Só não me preocupo com a polícia, porque já passaram por mim, a uma velocidade que devia ser algo próximo aos 200 km/h.

Abro o frasco e tomo algumas cápsulas. Me sinto mais dentro de uma, do que absorvendo. Deixo rolar o AC/DC. O cheiro do cigarro queimando, que me faz mudar de lugar. Já fui fumante. Não sou daqueles chatos que pedem que o cara deixe de fumar. Apenas me afasto, quando está difícil respirar. Tudo se passando, enquanto uma mulher esfrega um pano imundo em um chão encardido. Só para mostrar serviço, já que nem pano e nem chão, estarão limpos. Os bancos desconfortáveis da espera, o trânsito de pessoas indo e vindo. Abaixo para retirar uma pedrinha que está incomodando dentro do sapato. Ao me curvar, sinto uma câimbra na região da barriga. Puta que pariu, dor fodida do caralho. Parece que tomei um soco depois, com aquela parte dolorida quando me mexo. Antes tivesse deixado a pedra. E pensar que outro dia, entre pedras, caminhando em ruas esburacadas, encontrara mais de uma vez, moedas. Quem perde dá sensação de vitória a quem encontrar aquelas migalhas de bronze, embora seja mais fácil eu encontrar as de cobre.

Olho os livros que ainda falta ler. Fico sempre naquela expectativa. A gente deixa coisas para fazer, com esperança de ter amanhã. As fotos de mortos nos porta retratos são a prova disso. Todos deixando algo, com intuito de estar presente quando a ausência existir. Comecei a tentar fazer um desenho. Desperdício de tempo e material de desenho, já que sou péssimo nisso. Minha linha sai torta, mesmo com o auxílio de uma régua. Talvez eu não tenha limites, como disse uma ex-professora metida a esperta, que me diagnosticou assim, por eu escrever além das margens do caderno. Devia ser uma espécie de gênio, essa mulher. Da próxima vez que mijar fora do vaso, vou anotar. Quem sabe, seja um indicativo de que desejo mais uma vez romper os limites. E quando passo o papel higiênico para secar o mijo escorrido, uma nova tentativa de me redimir e tentar restabelecer a ordem. Bom, minha piroca é torta, quando está dura. Deve ser mais uma tentativa de sair da retidão. Mas isso tudo é só papo furado. Minha esposa não reclama de nada disso, e isso que me importa. O dia está ensolarado e quero voltar a dormir, por isso fecho as janelas e cortinas, e me enfio embaixo das cobertas. Dizem que é um belo dia. Pra mim é um saco. Vou tentar dormir e dar continuidade ao último sonho.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 12/02/2013
Código do texto: T4136064
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