Manicômio
Sinto saudades daquele aroma de qualquer coisa do passado. Abro o livro e provo do mofo, mas não me contento. Os sebos não guardam mais relíquias, apenas o que dizem para o público ler. É divertido assobiar sem chupar cana, já que a sucção impede assoprar como se deve. Deito por falta de vontade de me comunicar. Quando se conta algo a alguém, surge um assunto de um outro que diz ter vivenciado algo parecido. Vivemos como similares. Isso que faz criarem esses números de identificação, ou melhor, que tira a identidade do sujeito, tornando-o um dígito. É como se banhar todos os dias, sabendo que nunca lavará de vez a sujeira. Isso faz-me olhar o jornal, em cima da mesa de centro, com manchetes pouco interessantes. Me informo mais, sentando ao lado de idosos que jogam dominó. Estão bem informados. Esses sim, fazem questão de ler o jornal, acompanhar os noticiários, discutir as matérias. Escuto suas opiniões e as ignoro, feito o exemplar daquele jornal largado em cima da mesinha.
Deito a cabeça sobre o braço, esperando que ele adormeça. O sangue represado, deixa o membro gelado. Movo um pouco, vem logo o formigamento. Levanto da cama mancando, com pés dobrados e cansados. Escuto o som do portão ao lado, imaginando que seja o meu. O lençol amassado, conservando o cheiro de sexo. A memória guarda pouco do ato, daí a necessidade de repetição. Sonhara na noite anterior, que corria pela casa, — e nos sonhos, quase sempre a casa não é a nossa, mas sentimos como se fosse — jogando inseticida em diversos insetos que sobrevoavam alguns cômodos. Abro as janelas e só vejo o mundo lá fora a partir delas, em forma de paisagem quadrada. Procurei no retrato antigo uma semelhança comigo, mas só encontrei a figura parecida, nada que a memória traga à tona e eu possa me deliciar com a nostalgia. Em compensação, aquele arroz com salsicha e batata frita, isso sim, me trouxe uma lembrança gostosa, que entrou pela boca e logo estimulou o cérebro.
Nas ruas, cruzando avenidas de gente, vamos trombando com olhares de desdém. Próximo a uma pista, calçamos sapatos que relembram os calçados de palhaços. Andamos por piso liso, agarrando aquela esfera pesada e arremessando, esperando que acertem pinos e os derrubem, quem sabe, até mesmo os mate. Nosso desejo de ir adiante e não ser detido, jogando com força, com os olhos vidrados na tela, que expõe nomes e placares. O barulho dos objetos pesados que caem sobre o solo, feito balas de canhão. O banheiro que após urinar, dá-se a descarga e a água salpica alto, feito cascata de mijo. Em filas para aguardar o pedido, da comida ensacada, feito recipiente de vômito. Os códigos, as cancelas, os vigias, tudo com a tarefa de disciplinar. A sinalização indica, mas muito ignoram e andam fora das faixas. Um brinde de meio litro de chope ao par de brincos majestosos, que logo estarão naquele belo par de orelhas, combinando com um magnífico vestido.
A falta de água não vem repentina. Avisam com alto falantes. Ainda temos estocada na caixas d’água, o que faz diminuir a pressão, deixando aquele alívio de ter o que escorrer. Ao contrário de muitos que sofrem com a seca, que perdem a esperança de ver a água. Rezam por chuva, com seu gado magro morrendo aos poucos, já que nunca são grandes rebanhos, como os dos poderosos latifundiários. Essa racionalização aquosa é parecida com o jejum religioso. Um dia com pouco e os outros esbanjando. Mas a falta de água não é apenas aquela retrata no sertão, temos ela viva nas cidades mais “prósperas”. Basta darmos uma passada pelos bairros mais pobres, esquecidos pelos governos, que só lançam um breve olhar em época de voto. Carros-pipa desfilam, com o líquido precioso, com mães sofridas, levando na cabeça pesadas bacias. A água não acaba ao escorrer das lágrimas, mesmo quando se tem sede, parece que essa fonte demora mais secar. O ontem costuma ser esquecido, porque a urgência do hoje nos espanca. A dança da morte é um tango. Empolgante, forte, sedutora, dramática e por fim, trágica.