Recuo

Recuo pouco passos para trás. Parece tolice dizer que se recua ao inverso da frente. Mas, se pararmos para pensar, a frente caminhada é o recuo do adiante, onde avançamos como para encurralar o porvir. Voltando ao assunto. Recuei alguns passos em relação a minha sombra. Eis a questão. Era a sombra da minha morte. Sei disso, pelo aspecto daquele negrume, que abrira uma bocarra de mandíbulas alongadas. Se resolvesse caminhar, cairia nesse abismo de trevas, consumido até os ossos do meu desespero. Sim, o desespero possui ossos, daí sobreviver por mais tempo, mantendo-se fóssil. Recuar é se afastar de algo que cremos estar em um ponto, fazendo com que sejamos ligados pelo espaço que nos separa. O espaço sempre me completa, porque preenche esse vazio que habita em cada um de nós. Me refiro ao plural, pelo fato de termos essas semelhanças que fazem com que nos classifiquem em um mesmo grupo de espécie.

É uma tolice temer a morte, já que ela nos teme na mesma medida. Quando ela nos toma, tomamos a ela. Esvazio o copo para encher-me de líquido. Perco um espaço para criar outro. Estava tentando escrever isso tudo, mas a mão deslizou molenga, a caligrafia saiu horrível. Mas os fiéis, dizem que o deus “escreve certo por linhas tortas”, talvez eu possa avacalhar e traçar garranchos. E pensar que uma professora já jogara um caderno meu no lixo, o que demonstra a pouca habilidade em relação a psicologia infantil. O que compensava era uns amigos desenhistas, que caprichavam nas capas de livros didáticos. O espaço para mim é tão fugaz, que até para traçá-lo, sinto dificuldade. Uma linha feita com auxílio de uma reta, me parece uma tarefa das mais difíceis. Por isso, vou eu recuando com um esquadro, deixando um compasso furar a folha, para que atravesse essa superfície, mesmo sendo detido por outra. Sinto as dores dos membros, que acumularam marcas das chicotadas ao longo do servilismo.

Nossa, é quase daqui a pouco. Se tivesse um relógio no pulso, consultaria. No máximo, deixo alguma mão apalpar para medir os batimentos cardíacos. Os braços peludos, arrepiam por qualquer leve toque nas extremidades dos pelos. Nunca soltei tufos, meus pelos caem um a um, feito folhas que se desprendem das árvores, que em certas épocas, chamadas estações, caem, mesmo uma a uma, em maior quantidade. Se embolam com os cabelos longos da minha mulher, aí sim, viram tufos. Parecem aqueles fenos que voam em filme de western. Tenho perdido a paciência para com os filmes. O cinema é uma arte empobrecida, com seus espetáculo de quase tudo pronto, desejando fazer com que possamos digerir sua fórmula de movimento, fazendo-nos estáticos. No rádio, imaginamos mais, apesar das vozes. As vozes atrapalham, exceto as de dentro de nossas próprias cabeças. Não contei que tenho dupla personalidade, acredito que por efeito do nome composto com o qual fui batizado. Um dia acordo mais esse e no outro sou mais aquele.

O impacto me fez recuar. Arremessado, com a força que me agrediu. Mas eu agredi de volta. Pois fui para trás, mas a coisa teve que vir para frente. Encarei meus dentes, creio que eram as gengivas, pelo tom. Não sei se a boca idosa é com menos dentes ou mais gengiva. Ainda me recupero daquela visão, com a senhora obesa estatelada no chão. Ela disse que escorregara, pra mim, recuara, a ponto de desequilibrar e cair de forma silenciosa sobre o solo, amortecida pelas carnes flácidas. E o cãozinho assistia a tudo, com suas orelhas de dumbo, só faltava voar. Não achei graça do episódio, já que gente importante pra mim morreu disso, de queda, ou recuo diante de sua sombra da morte. Vamos recuando, tentando se esquivar do último encontro, até que a morte nos arma a cilada, ela recua e nós nos projetamos, caindo ao encontro dela. Depois de amanhã é ano novo, olha a gente se lançando novamente. Cada aniversário, é um passo adiante para nós e um recuo da morte em relação à vida. É na encruzilhada que nosso destino é traçado. Pelo espaço cruzado, eu vazo.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 03/01/2013
Código do texto: T4066133
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