Em Algum Dia
Seria sábado, se não fosse um domingo. Os dias são sempre os mesmos, nós que mudamos a roupagem, para criar essa natureza cíclica do calendário. Que importa a respeito dos vivos, sendo que a vida percebida é a de cada um de nós em relação a si. Sou de um grupo de humanos. Me agradaria mais pertencer a uma alcatéia, creio que possuem algo mais integrado. Sou apenas entregado. O que me faz recordar da correspondência passada. O carteiro entregara um embrulho de cor parda, não pude saber o que era com o tato. Com certeza encomendara algo. Nunca soube de entregas tão equivocadas, pois o endereço é algo bem específico. Nossa carta acaba voltando, com algum equívoco relatado, mas as correspondências de contas, te encontram até mesmo no inferno.
Fico sentado por um tempo. Quando me levanto, sinto dores nos pés. Se isso não é velhice é o que? Agora sei porque meus pais andavam pela casa arrastando os pés cansados. Somente aquele som de chinelo contra o piso pela madrugada, fazendo o trajeto entre o banheiro e o quarto. Nunca me satisfaço de água. Nenhum de nós irá se satisfazer, enquanto viver. Comentam que nosso corpo é feito quase que por inteiro de água, assim como esse dito planeta em que habitamos. Será que o deus que tanto adoram é líquido? Quando me falam do espaço, onde os planetas flutuam, pensam que o vazio é maior do que a quantidade de água. Ainda que me digam, que esse nada é ilusório, já que tudo é preenchido por micros disso ou daquilo, e apesar de não enxergarmos, estão em toda parte. O nada é tudo que ignoro, sendo ignorante, me contento com esse niilismo, bem socrático, só sei que do nada sei.
Encontrei um pelo branco próximo a base do pênis. Essa é a verdadeira decrepitude, já que não precisa se exibir ao mundo, apenas insinuar-se para que eu me dê conta dela. Nos detemos em cada detalhe. Ontem eu assistia um telejornal, pouco importando a notícia, atento a forma como o âncora retorcia os lábios para dar gravidade a informação que transmitia. Creio que o termo âncora seja apropriado, por conta da postura estática. As notícias são tão falsas, que as pessoas assistem na tv, depois compram jornais, revistas e por fim, perguntam uns para os outros sobre a veracidade dos ditos “fatos”. Prefiro me alienar disso. As coisas ditas importantes, como aquele aumento que irá defasar consideravelmente meu pagamento, eu saberei com ou sem o anúncio e não adiantará espernear. Engraçado é o alarme das pessoas em relação ao falecimento de algum estranho, que é relatado pela mídia, como se isso fizesse parte do mundo delas. Os artistas, costumam cagar para o público, não para o dinheiro que os seguidores investem neles.
Fiquei chateado quando o Samarago faleceu, não por ele, mas por nós. Cazuza dizia que seus “heróis morreram de overdose”, os meus estão morrendo de senilidade. Alguns entusiastas diriam que isso é fruto da evolução da medicina. Prefiro acreditar, que esse apego a vida, é pela escassez de pensadores úteis em nossa contemporaneidade. Os poucos existentes, tentam resistir ao máximo, pois sentem fazer parte de um grupo em extinção. Provavelmente algum “ativista” irá me criticar. Acho engraçado, os pseudo-ativistas, que por exemplo, não bebem coca-cola, mas consomem outras marcas, indiferentes a danos bem mais significativos. Adoráveis os hippies pós-modernos, com a rebeldia e a maconha na mente, mas sem esquecer o cartão de crédito e o depósito dos pais, que continuam sustentando sua liberdade. Não esqueço dos vegetarianos, que chamam os que comem carne de carnívoros, como se eles não fossem. Talvez os caninos, sejam um adereço para abrir latas.
Vou caminhando pelo supermercado. Que dignidade dos que fazem compras. Com seus carrinhos abarrotados. Mulheres gordas conferindo produtos, seguidas de homens obesos vasculhando prateleiras. Como se os magros não fizessem compras. E como fazem. Os shoppings que o digam, com seu ar condicionado, que condiciona-nos a entrar por suas avenidas, cercados de olhares dos outros trafegantes. Gosto de sentar em um banco e ler, principalmente de cafeterias. Nos ambientes que vendem cafés, apesar dos freqüentadores estarem interessados na cafeína e conversa fútil, possui aquele glamour de local intelectual, pela tradição francesa que se popularizou. Bebo minha água e leio, apenas mudando a posição das pernas. Seria bom beber um chope ou uma cerveja, mas quando opto por isso, deixo de ler, relaxo demais. As garçonetes não gostam muito de minha presença, pelo pouco lucro, mas eu acabo sustentando o status do café filosófico.
Depois chegará minha mulher. Como adoramos os pronomes possessivos. Ela desfilará com um vestido que deixará aquelas belas pernas de fora. Essa é a melhor leitura. Primeiro acompanho os traços do corpo, até tatear inteiro depois. Me faço de cego para abusar do braile. A vida é uma maravilha. Troquei o livro pelas pernas e a água pelo chope no shopping. Espero que esteja usando calcinha transparente. É como uma tela onde vejo antes o que vou provar depois. A sede foi tanta, que depois de vários chopes, bebi água. Mas já era hora de irmos embora. Nada de carro. Caminhamos até o ponto de ônibus, eu com as pernas moles, assim as sentia. Pedi que apressássemos o passo, havia duas mulheres cheias de sacolas. Deveriam estar indo para o ponto, mas eu queria ter onde me sentar. Que elas colocassem as sacolas no chão. Ficamos aguardando, não muito, apenas o suficiente. Alisando aquelas pernas. Vendo o tempo passar. Passo o tempo vendo.