Hora D

Sirva-me um ou dois copos de água da torneira, nesse bar de bancos com assentos redondos e encardidos. Os copos, meio embaçados, transbordam gotículas que salpicaram da torneira, ao ser preenchido. Goles longos, que fazem absorver o líquido por completo. Observo os quadros de marcas variadas de bebidas, exibidos na parede suja e descascada, que também exibe a fiação mal instalada. Uma bela negra adentra o recinto, de short curto e cabeludo despenteado. O olhar do homem sentado só na única mesa existente, que fita a mulher, com olhos de cobiça, enquanto bebe sua cerveja gelada. Indiferente aos olhos alheios, ela pede um cigarro à varejo, acende com o isqueiro preso em uma corrente, saindo requebrando os quadris e soltando pequenas nuvens de fumaça.

O relógio pendurado indica uma hora qualquer. No grama da praça um indigente conversa alto e sozinho, não de todo só, mas estando consigo. Um jornal, deixado para sua distração, é lido com gravidade. Com um bichano ao lado, que é acariciado por mãos grosseiras, atrai a atenção dos pedestres. A chuva parece anunciar-se, sendo repelida por lufadas de vento. As folhas cobrem calçadas e cabelos. Um surdo entrega papéis de igreja, fazendo sua pregação calada, com escritas distribuídas, que são rejeitadas por alguns, o que causa sua indignação, que pode ser vista na modificação da expressão facial. Pombos disputam o espaço dentro das pastelarias, em busca das migalhas que se espalham no solo. Mãos estendidas nas calçadas, cobrando a esmola do dia-a-dia. O cão bebe da água que escorre pela valeta. Uma sirene de ambulância prende a atenção das pessoas que aguardam o ônibus no ponto.

Na catedral, um grupo escuta rock, sentados nos degraus, rindo alto, com um casal que se agarra no muro ao lado da igreja, com beijos fortes e mãos que percorrem os corpos dos jovens. Um idoso observa a sexualidade dos jovens, talvez com inveja, resmungue do que chama “uma ofensa”, jogando miolo de pão aos pombos que aglomeram próximos aos seus cansados pés. Uma senhora cruza as pernas despudoradamente, exibindo coxas fartas, estriadas, repletas de celulites e varizes, mas que deixam certos homens alvoroçados. Em suas costas, uma tatuagem já desbotada, com o nome que parece ser de seus filhos, como dita a moda das mães tatuadas. Um desfile de uniformes, diversas empresas fazendo propaganda através de seus funcionários, que entre um intervalo ou outro, transitam exibindo slogans.

Dois homens se beijam, isso escandaliza alguns moralistas. Nada comparado ao estresse no hospital, em que pessoas aguardam atendimento, com o som de gritos de uma criança com problemas mentais. A face macerada pelas chagas do mal-estar acrescidas do tormento de violenta gritaria, com enfermeiras de sorrisos congelados, percorrendo os corredores frios, conduzindo agulhas, soros e medicamentos. Uma senhora faz uma oração, apenas fechando os olhos, dando impressão que estava cochilando. O médico obeso, conta histórias enfadonhas, aumentando o tempo de consulta e de espera, minando a paciência dos pacientes. As horas passam lentamente, o cheiro de éter, as roupas brancas de uma palidez mórbida. Alguém pergunta as horas. É a hora de...

Agora a chuva começa. O casal se beija, se ama, se excita. Suam nos lençóis. Gozam na cama. A boca prova os seios de bicos marrons. A pele morena é lambida. As bocas se tocam, se chamam. O livro de poesias fica esquecido, em cima do móvel. Roupas jogadas no chão. Cabelos atrapalhados, puxados, arrancados, espalhados pelo cômodo. Arrepios, gemidos. Olhos nos olhos. A fuga é aprisionar-se no corpo alheio. Janelas abertas e a luz do poste a adentrar. Perfume de secreções. A força da penetração que provoca gemidos mais altos, quase gritos. Um banho em seguida, com dois amantes abraçados, um dormindo sobre o braço do outro, satisfeitos, felizes, relaxados. Os dedos de leve acariciam o dorso, causando arrepios gostosos que fazem estremecer. Tudo é mágico quando a vida é satisfação. As horas são ignoradas, vive-se o instante. É possível sonhar, basta fechar os olhos e cochilar. Amar é estar desperto, e nunca acordar.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 24/11/2012
Código do texto: T4002508
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