Ambientes
O ventilador, gira suas hélices de vento quente, fazendo o ar sufocante rodopiar. Sigo um instante após o outro, como se dependesse de momentos. Insetos chovem, invadindo os cômodos por brechas, em uma onda de pequenos seres, que escorrem e se proliferam, inundando o ambiente, com seus zumbidos e vôos rasantes. A água que bebo é gelada, fazendo com que sangre a garganta. O confronto térmico, que faz do corpo, uma atmosfera em conflito. Os cães continuam a latir pela madrugada, enquanto gatos no cio se esguelam, como se precisassem anunciar seu coito, de forma despudorada, já que o pudor, é um não privilégio humano. A tv ligada, é uma sombra em forma de ruído, que passa pelos ouvidos quase ignorada, deixando algum resquício de impressão.
As luzes, todas apagadas, servem de morada à claridade lunar, que enche o espaço. Sou iluminado por esse reflexo solar que a lua joga sobre nós. E quando é época de lua cheia, não sou um lobisomem, apenas um homem de lobo domesticado, que se faz próximo de um cão, agrilhoado ao cárcere que finge ser um abrigo. Me alimento de ossos, que são meu ofício de um vício medíocre. Consigo roer os alicerces dessa minha falsa consciência, pois nunca sou rápido o bastante, para poder degustar as vestimentas de carne sobre essa ossatura. Talvez seja mais hiena, quem sabe abutre, me servindo dos restos que alguém já aproveitou. Nesse desespero faminto, cubro o espelho que capta minha animalidade, já que não desejo presenciar esse estado de aflição. Minha arte é degenerar-se, até que não consiga identificar mais nada do que sou, se é que algum dia tenha sido.
Desço apenas dois degraus. Poderia ter subido. Mas o patamar em que me encontro, faz-me apenas deslocar para esse ponto um pouco abaixo. A cerveja espuma e entorpece aos poucos. Isso explica as batidas na parede ao lado, com gemidos de vizinhos, que se calam apenas quando se cansam de trepar. A percussão é feita pela batida seca do móvel contra a parede, e o gemer se torna melodia sensual. Os gatos sentiriam inveja do barulho. Eu estou relaxado, fumando meu baseado, que enrolei com uma página da bíblia, Coríntios alguma coisa. Uma bela seda que irei bem aproveitar. Nu, sentado no batente, soltando baforadas para o céu, afrontando as nuvens. A música que escuto, toca apenas em minha cabeça, é uma canção íntima, memorizada e repetida. Sentindo necessidade de se banhar em uma cachoeira, contentando-se em enfiar a cabeça embaixo da torneira de um tanque.
Os óculos pesam no rosto. O rosto é despido desse artifício ótico. Deitado no chão de piso com sobras de mormaço, contemplo a tomada, com seus olhos obscuros, prontos a produzir faíscas com o contato de algum plugue. O cadáver de uma mosca jaz próximo à mesa de centro, enquanto as fotos revelam a perspectiva de uma época que a memória ainda busca resgatar. Já desliguei a tv sem perceber, com a mão apoiada em uma garrafa de conhaque, que guarda apenas um dedo de bebida, que finalizo com um último trago. A cabeça pesa e a visão faz com que perceba o cômodo girar. Os morcegos se exibem, posso escutá-los. Tudo que é estranho me é familiar. A carteira aberta, com notas espalhadas, em uma indiferença monetária. Me abano com uma obra de Klossowski.
Começa a contagem regressiva. A mão segura a faca de carne, que desliza sobre o braço, abrindo os pulsos, que sangram copiosamente. Escorre o sangue sobre o piso, inundando os vãos do rejunte. Não sinto dor, apenas a calmaria dos momentos trágicos. Minha vida escoa, a procura de algum ralo. As pálpebras pesam e os sentidos começam a não mais responder com prontidão. O espetáculo é belo. Meu corpo nu e patético, ferido e deslizante, correndo até empoçar. Um trovão estala, seguindo a luminosidade do relâmpago que o precedeu. A chuva cai, mas sem limpar o abrigo de minha morte. Meus lençóis intocados, a ponta do baseado apagada e mergulhada na viscosidade do sangue. A garrafa de bebida de pé, exibindo um rótulo vulgar. O livro, emborcado e com a página amassada. A noite continua existindo, apenas o silêncio foi introduzido no cenário.