Inusitado

Reunidos em praça pública, com trajes similares, apesar de detalhes distintos que faziam ressaltar as subjetividades. Encontro programado com viagem marcada para local próximo. O embarque em polvorosa, com silvos de alegria. Baco alimentava o paladar dos passageiros, que cantarolavam em alto tom. Na chegada, o desembarque apresado e a entrada de um local imundo, obscuro e de pouca comodidade. Espalham-se pelas mesas, ainda vazias, escolhendo lugares. A bebida transborda dos copos plásticos sendo absorvida com goles prolongados. Novos adeptos começam a adentrar. Misturam-se todos, com as luzes foscas tentando se fazer notar.

No centro, o pequeno palco, onde grupos improvisam com som estridente. Corpos balançam desordenados. Do lado de fora, alguns contornam os veículos, conversando longe do barulho, provando algum entorpecente ou se atracando em um sexo explícito. No meio da pista, empurrões e brigas que desatam em agressões físicas, promovendo um ou outro corte, chocando os pouco acostumados a ver sangue. Garrafas quebradas, espatifam no chão, com os cacos pisados, fazendo estalar o caminho dos coturnos. A proliferação de trajes negros, dão a noite um ar ainda mais sombrio, em um contraste com os corpos mais claros. Comida é iguaria rara, como se o corpo só precisasse de líquido, talvez pela abundância de suor que a movimentação faz inundar os corpos, molhados pela ofegante transpiração.

O grupo se desloca em direção as ruas. Cruza avenidas, pernoitando por uma madrugada gélida, abraçados a garrafas de bebida quente e barata. Os cigarros formam uma segunda neblina, que enche os pulmões e esvazia as mentes que vagueiam pela fumaça flutuante que as tragadas exalam, como chaminés humanas. O beijo também se torna uma troca fumegante, onde o hálito, aromatizado pela nicotina, regurgita e absorve fumaça, em um romantismo de tabagistas. Indigentes se abrigam embaixo do palanque, disputando espaços, com seus coberturas de múltiplas cores, feito um arco-íris miserável e esfarrapado. Notam a presença do grupo que aproxima, trocando olhares. Uma mendiga se levanta, aproxima e pede um cigarro, recebendo aquela guimba diminuta. Fazendo pose para as mãos do jovem, que imita uma câmera fotográfica e com a boca faz o som dos flashes. O sorriso de dentes raros e podres, com a expressão esquizofrênica, procurando ser sensual diante da ilusão de ser notada pelos que debocham de sua condição decadente.

Um veículo barulhento se aproxima. O motorista, embriagado, conhecido por todos, não mais com presença de palco, mas sim, enrolado em uma manta de um vermelho desbotado. Senta-se e olha o céu estrelado, apontando a lua que cresce, enquanto a madrugada se esvai. Da mesma forma que vem, ele vai, afastando-se em seu automotor indiscreto. O grupo progride pelas ruas desertas, encontrando outros transeuntes, que oferecem algo mais delirante. Tudo se passando enquanto um desequilibrado tenta se equilibrar entre carros. A discussão surge e as agressões recomeçam, com corpos socados e desabando sobre o asfalto. Copos de vidro arremessados, espatifando nas portas do comércio, que encontram-se abaixadas e indiferentes frente o episódio. Todos se dispersam.

No posto de gasolina, compra-se mais cigarros. Um morador conversa com o vigilante, fazendo especulações sobre as composições de Raul Seixas. A preocupação dos rapazes perdidos. O receio frente os rivais que se aproximam como lobos em noite densa, em busca de presas. A loja de conveniências é como uma fogueira, mantendo sempre ao redor os lupinos, mas impedindo-os de um ataque. O cerco é desfeito, as horas se adiantam e o dia já dá sinais de que irá surgir. A viagem de volta será mais breve, embora oi esgotamento tenha ultrapassado a percepção de tempo. Um ritual de fogo ainda seria executado, com vestes queimadas em honra da deusa Fortuna, para que pudesse o sacrifício, compensar os dissabores que o acaso havia-os feito saborear, em uma tentativa de aliviar o sabor ácido do fel. Logo vem o sono, com a força que o álcool é capaz de impor, abaixando devagar as pálpebras, que fitam os dedos amarelos, com as marcas da nicotina entranhada na pele.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 21/10/2012
Código do texto: T3944196
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