Os Cavalos
Segue o céu nublado, com o sol negando-se a aparecer, velado pelas nuvens densas. O deslocamento do veículo pela estrada, com resquícios de chuva que formam pontos úmidos, que outrora foram poças, agora sendo manchas no asfalto. O asfalto, cinza como o céu, revela sua nebulosidade bruta, percorrido e massacrado por pneus que o desgastam, assim como ele retribui, desgastando-os também. Esqueceram de acender a luz do sol, ou antes, encobriram-na com esse manto de neblina. Os rostos com aparência de cansaço, pela comprovação dos semblantes duros, com olhar perdido no vidro que se faz de tela para o mundo diante das faces de paisagem. Somente o varal da sineta que balança pela força das curvas, enquanto as barras são agarradas por mãos calejadas.
Fitar um rosto oprimido é como levar uma pancada. Não sabemos se aquela opressão é a nossa que reflete nos olhos daquele que observamos. Sentados enfileirados, encostando pouco nos corpos que roçam o nosso. As vozes serão sempre um tumulto de pouco entendimento, necessitando o subterfúgio de direcionar a audição ara um ponto específico. Aroma de perfume barato e derramado em exagero, que logo será substituído pelo odor do suor que toma conta da pele exposta ao sol, ou mesmo ao esforço, que também faz pingar, ainda que com menos melaço. A garapa proletária inunda os olfatos mais resistentes, exalando sua intoxicação gerada por esforço físico. A maquiagem exagerada, borrada na face das meninas em idade tenra, provocam um contraste grosseiro. O som do aparelho portátil que tenta abafar o som das vozes, fazendo-se imperativo auditivo, incomodando o sossego dos idosos com ouvidos mais cansados.
Tudo sob um ar de sobriedade, que perpassa pelas vestimentas discretas. Uma insinuação ou outra, seja de pernas ou de busto, mesmo de algum bíceps em mangas curtas. Uma trepidação que faz o leitor aguerrido perder as palavras, vendo as letras se embaralharem, em uma espécie de tarô, pronto a se reorganizar em quebra-cabeças gramatical. Não há quem não consulte a hora, ou mesmo se deixa levar pelo ato do outro que averigua o horário. O pasto verdejante serve aos ruminantes, ao alcance das vistas, de nós ruminados, por estarmos aos poucos sendo devorados pela vida que nos mastiga e cospe no mundo, em um ato regurgitante. As aves fazem dos fios de alta tensão, seus poleiros, com a destreza de confeccionar ninhos, vez ou outra despenca algum filhotinho.
Na baixada estendemos a visão onde o foco alcançar. As construções servem de montes que dão mistério a cada curva, revelando transeuntes que vagueiam pelas margens. São como o mato que cresce, insistente, a cada capina. O girar da catraca que move os passantes para duas dimensões, dizendo quem vai e quem fica. As portas são portais mais profundos, deixando que vaze para o mundo paisagístico, não pertencendo mais a esfera dos que vão, quase congelado em um passado recente. Alguns obstáculos e mais um destino, eis a próxima parada. Diante da curva, a dor inimaginável, com dois potros no acostamento, sendo que um deitado, deitado e inerte, parece falecido, vigiado pelo outro de pé, que não tira os olhos daquela depressão da sua espécie. Cavalos tristes, que afetam cm seu espetáculo deprimente, os olhares mais sensíveis de quem pensara ter se esquivado das dores do mundo.
Quem pensa que seja um lamento equino, se engana. Talvez a forma de sentir dessa espécie tenha formas impossíveis a nós. Mas algo corta de fora a fora. A formiga que capenga ao ser quase esmagada por inteira, arrastando o corpo que é último fardo em vida. Os cães ganindo com moscas banqueteando-lhe as feridas. O açoite do cavaleiro que sente-se superior por adestrar. O estalar do tronco partido pela fúria dos ventos. As folhas voando perdidas, desprendidas e prontas a secarem até tornarem-se húmus. A lágrima que escorre da faça da criança sentada no meio fio. O estrondo da pedra esfacelando após declinar de um rochedo. Aquele som da água ferida por algum objeto lançado contra sua superfície. Angústias que se somam em um poema de sofrimento, compondo versos para uma vida de lírica fúnebre. Sim, entendo o apego crepuscular de Nietzsche aos cavalos, me sentindo quase um centauro, por ainda ser gente, deformado com a angustiante melancolia equina.