Filósofo Decadente
Já começo a folhear as páginas da minha imaginação, colhendo aquela espécie de relato que somente eu consigo representar para mim mesmo. Colocando e retirando esses olhos de vidros que não me deixam enxergar, apenas me iludir um pouco acima do normal que as vistas tendem a alcançar. São todos códigos jurídicos, que penso da necessidade em um decifrador de enigmas, quem sabe um herói grego que já enfrentara criaturas miraculosas, conseguiria desvendar os estratagemas das leis, que só fazem desempolgar o leitor vulgar, quer é chamado cidadão sem nunca ter sido consultado. Os dedos já não calejam por conta da esferográfica repousada entre as falanges, mas revelam dores de articulações que repetem o gesto datilógrafo.
Sigo o piso, pensando em nossa disposição, já que somos peças de um tabuleiro. Cada movimento pode levar a um xeque-mate. Até o vento só se faz presente, pela força de uma mecânica movida à eletricidade. Não quero mais esse hálito de sereias com rostos maquiados. Me pergunto se o cadeado é para não deixar que entrem ou me impedir que saia. Que os dados rolem antes da roleta russa girar. Eis a gaveta que abro e fecho, com volumes de papéis com um branco que diz mais do que rabiscos que eu venha a grafar. Prossigo escrevendo, pela teimosia de insultar a palidez da lauda. Sujo aquele que se atreve a ler o que escrevo, contaminando o solo de mentes acostumadas com esse Paraíso que a conformidade estabelece. Me faço de Serpente, só que diminuta, feito um verme que se esgueira pelas bordas daquele que raciocina. Incomodo feito o zumbido de um pernilongo, que enfurece mais do que a picada em si. Já que sou aquele espírito que passa, com o rastro de sonoridade que fica e faz odiar.
Quase chego a ser cristão, já que faço questão de repartir essa minha miséria, multiplicando esse pão amargo que embrulha os estômagos. Um trago de algum aperitivo poderia ser útil, mas faço-os engolir um vinagre que não pode ser cuspido. Faço dessa esperança, um desilusão. Conto boas novas, dizendo que bom e mau inexistem, deixando essa moralidade ferida, até que o machucado seja de uma profundidade incurável, com valas que mutilam o corpo. Debruçado sobre as cabeças, aguardando os balões de ideias içarem, para podá-los com tesoura de jardinagem, deixando voar o imaginado, até se aglomerarem em nuvens, para que possa produzir futuras tempestades. Graças a essa maioridade, posso fumar meu charuto vagabundo, adquirido em casa de artigos religiosos, soltando névoas que fazem do quarto um sítio sob neblina. Se os pulmões estão cheios dessa intoxicação, será algo bem menos maléfico do que esses andares de uma fé, que ergue seus pilares sobre a inocência de suas vítimas.
Leio Saramago e me distraio. Suspiro aos poucos, com receio de bloquear de vez as vias aéreas. Para o asmático, o ar é sempre um imprevisto, podendo se alterar e recusar-se a transitar. Um dia, cada um de nós deixará de respirar, mas na asma, esse momento último parece estar se insinuando a cada gesto. Por isso o copo de vodka que faz badalar o sino da garganta, aquecendo, ardendo, sufocando sem o desespero da apinéia. Meus beijos ácidos corroem lábios, desde quando comecei a proferir insultos a dignidade desse conservadorismo nefasto. Essas gotículas de saliva lançadas aos berros, recolhidos com mais afinco do que as palavras atiradas com brutalidade. Vivemos em uma federação que fede, exalando aquele ar pútrido que só os mais vis exalam. Sou favorável ao vomitório, para que cada um possa aliviar-se desse indigesto ato de cidadania.
Vou vomitar escrevendo, já que a náusea se acumula a ponta de tornar insuportável. Despejo esses pedaços trágicos em enxurrada de caracteres. Mas ainda fica alguma sobra no estômago, sei que no futuro ocorrerão mais vomitórios. Ontem tentaram me convencer de que existo. Preciso de muito ainda para existir. Se existência tenho, será em forma de algo que antecede o rascunho, formando um vulto que nem damos importância, já que parece algo tão distante e irreal. Cada vez que o dia se torna escuro, minhas ideias clareiam. Adoro destruir imagens, o que me faz despedaçar espelhos. Olho ao redor e não me vejo, mesmo com a sala repleta de pessoas em volta. Consigo fugir de mim, fazendo-me deserto, a ponto de enclausurar-me só até a fuga do casulo, em que uma das metamorfoses esteja completa, não necessitando de borboletas, já que o processo é larval, rastejante. Não sei de onde vim e nem para onde eu vou, mas por acreditar estar aqui, produzo esses mentirosos atos.