Diário

Segue seus passos por ruas movimentadamente desertas. Fitando olhares vazios que refletem apenas a desilusão de suas órbitas obscuras. Cruzando faixas que ditam onde pisar, menosprezando sinalizações e circulando no trânsito de automotores ferozes, pronto a esfacelar corpos. O ar pesado, ainda mais denso pela falta de chuva, paira sobre as cabeças, feito uma nuvem escura que não chove, apesar de anunciar uma tempestade tóxica que nos abafa. Pessoas com rostos sem faces circulam nas movimentadas calçadas, quase se esbarram, mas a moral as impede de uma trombada, desviando do impacto e voltando a sua rota. Trânsito também de pedestres, com sua tração humana, não menos mecânica, podendo ser medida pelos gestos restritos.

Na esquina, o pastel engordurado nas mãos da criança, que tenta morder, enquanto o caldo pinga no piso encardido. O casal de cegos segue tocando e cantando a canção de esmolas, embora a lata esteja vazia, já que só o vento tem se apiedado do seu infortúnio. A lanchonete de anúncio pomposo e preço pouco convidativo, exibe sanduíches murchos, inexpressivos como a expressão dos empregados que tentam sobreviver em uma rotina sub-humana. Terminais bancários se espalham, facilitando o acesso aquilo que se pressupõe como já pertencendo a quem os acessa. Homens de terno provam seu fast food, cobiçando as pernas da Lolita acompanhada dos pais, que senta na cadeira com pouca importância aos modos que a etiqueta dita. Acima das cabeças, o letreiro anuncia a promoção, não importando o fato ao casal que se olha, mesmo estando ambos acompanhados com seus respectivos esposos, já que o flerte é discreto, mas não menos excitante e traidor.

Agora é o som de auto-falantes, fazendo o marketing diverso, abafando o som do gás do refrigerante que borbulha no copo plástico. No banheiro o som parecido ao de turbinas, com dispositivos que assopram ar e prometem enxugar as mãos sem papel, já que o anúncio alerta para a necessidade de preservar a natureza. Nada que afete os que defecam nas cabines apertadas, puxando grandes extensões de papel, com intuito de limpar não apenas os traseiros, mas o acento e até o solo já respingado de urina. O odor do produto de limpeza, acompanhado pela tosse do homem que ajeita a braguilha. Quadros expostos sem arte, já que reproduzem cópias impressas, servindo de utensílio de uma vulgar decoração, representando a natureza morta, que só consegue se expressar na metrópole, por esses artifícios extravagantes.

No ponto de ônibus, o sol que castiga os rostos. Procurando qualquer poste que faça sombra, ainda que cubra uma pequena porção do corpo. Guimbas de cigarro se amontoam, como se desejassem que daquela coleção nascesse algo. Os mais ousados já refletem sobre o nascimento de algo menos notório, já que o câncer toma de forma silenciosa, oferecendo uma colheita dolorosa. Dentro dos coletivos, membros agarrados a barras de ferro, na busca por equilibrar-se entre solavancos e curvas bruscas. A face do motorista é cansada, só se animando ao contemplar no retrovisor, algum decote generoso ou par de pernas revelado pelo levantar do vestido na subida dos degraus. A cachaça continua sendo servida no boteco, que possui público pequeno e cativo, com brindes frequentes e o tradicional derrame para o santo. Mulheres desfilando as modas, com cortes de cabelos similares e vestimenta idêntica. Televisores se multiplicam, atraindo a atenção de quem se deixa hipnotizar.

Estudantes sentam no chão de areia vermelha, com seu jeans que resiste a quase tudo, demonstrando aquele ar de desleixo padronizado pela rebeldia. Garis limpam a sujeira que se multiplica, como se exercessem uma fé, cada dia, esperançosos do outro ser menos pútrido. Aquele ar de deboche nos lábios ao passar a vassoura sobre um preservativo usado, que fora abandonado de forma displicente. O automóvel com passageiros que desfrutam do ar condicionado, passa em velocidade moderada, fazendo com que o garoto no banco detrás, observe o homem sentado no banco da praça, que lê um livro. É possível identificar o nome do autor, “Fernando Pessoa”. Pensa que aquele nome só pode ser de um autor brasileiro, acreditando que ele, apesar de ser Pedro, também é “pessoa”. O jornal trazendo notícias já passadas, voa pelas ruas, escorado por velho que o utiliza para limpar o solado do chinelo, sujo ao pisar nas fezes de um cão. O dia passa. Mais um dia. Dias e hábitos. Diários.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 24/08/2012
Código do texto: T3846373
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