Quando Eu Partir

Bruno e eu encontramo-nos em frente ao arco que guarnecia a moradia dos mortos; nele havia a seguinte inscrição em latim: Parce Sepultis, que significa: morto, enterrado. Era o Cemitério de Irajá, forjado com pedras que remontam o século XIX. Cumprimentamo-nos. Nós estávamos de condolências, pois seria velado um grande amigo nosso da faculdade, que, morrera tão jovem e de maneira tão inexplicável. T*** fora passar o feriado com seu pai em Mangaratiba, o qual tem uma frota de barcos de pesca na região. Passou o dia inteiro na casa do seu pai e saiu à noite sozinho para passear na praia apenas para “contemplar o luar” e sumiu, seu pai presumira que passara a noite com alguém. Ás 6h do dia seguinte fora encontrado por um funcionário do seu pai que esquecera os documentos na casa de barcos, horrivelmente morto; crucificado num par de remos e a jugular cortada e, a inscrição em sangue: “Depois da morte, todos somos perdoados”. O assassino não fora encontrado.

- Estranho, né? – Disse ao Bruno.

- Estranho o quê?

- A maneira como T*** morreu, sei lá, é meio antinatural!

Bruno ponderou alguns segundos e respondeu:

- Todas as mortes são antinaturais!

- Se Deus é bom, porque ele criaria algo como à morte?

- Você não iria querer vida eterna, se entediaria.

- Ah, eu tenho lá os meus passatempos!

Rimos.

Passamos pela capela que dá acesso ao cemitério, propriamente dito; refleti sobre a expressão em latim: “Parce Sepultis” e suei frio. Um coveiro abria uma sepultura e, apesar de ser um sujeito com aparência duns cinquenta anos, fazia o seu serviço com muito vigor e cantava alegremente um samba do Zeca Pagodinho:

“Se eu vou na Mangueira ela vai

Se eu vou na Portela ela está

Ela vai no Cacique de Ramos

Ela vai no Estácio de Sá

Ela vai no pagode em Xerém

Ela vai no pagode em Irajá”

Perplexo com a cena, disse ao Bruno:

- Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz; cantar enquanto cava uma sepultura?

- Acho que o hábito torna isso em coisa normal. – respondeu-me Bruno.

- É verdade, acho que quem estuda e não faz trabalho braçal possui um senso crítico mais apurado.

Enquanto o homem cantava, revela-se um crânio, ele o pega e o atira longe, sem nenhum sinal de hesitação ou alteração de qualquer traço de sua fisionomia.

- Olha só Bruno – Eu disse – aquele crânio já teve língua um dia e, podia até cantar, mas hoje esse crápula o atira por aí como se fosse o queixo de Caim, aquele que cometeu o primeiro homicídio. Podia ser a cabeça de algum político também, isso que esse cretino chuta por aí, ou até mesmo alguém que acreditou que poderia ser maior do que Deus!

- É pode ser.

- Acho que podia ter sido um operador de telemarketing – continuei – que desprezava os seus colegas e só sabia dizer para o seu supervisor: “bom dia amado chefe! Como está o senhor meu bom chefe?” o operador Tal-e-qual que só sabia elogiar o supervisor Tal-e-qual na chance de ganhar uma promoção um dia, porém nunca conseguia.

- É. – respondeu Bruno.

- Podia ser e, agora a sua dona é a madame verme; sem queixo e com o quengo martelado pela pá de um coveiro. É uma evolução muito interessante se tivéssemos a capacidade de entendê-la. A formação acadêmica dessa “cabeça” terá custado tão pouco, que agora só sirva para jogar futebol com ela? A minha cabeça dói só de pensar nisso.

- Talvez, ele tenha se formado pela Estácio. – Disse Bruno.

Rimos.

O coveiro desenterra mais um crânio.

- Mais um? Quantos crânios hão de sair daí? – disse Bruno.

- Talvez esse seja o crânio de um advogado – eu disse – onde foram parar os seus sofismas e seus mandatos, Dr. “devogado”? Por que permite um patife qualquer acertar-lhe a cabeça com uma pá e não o denuncia por lesões corporais?

Bruno riu e completou:

- É verdade, os advogados se acham os maiorais; são soberbos, altivos, mas o fim será exatamente esse aqui; sete palmos de baixo da terra!

- É verdade.

Estupefato com o coveiro que ainda cantava, decidi dialogar com ele:

- De quem é essa cova, meu senhor?

- Minha, meu jovem. – Respondeu o Coveiro.

- Sua é claro, entendi, mas a cova que abre é coisa de morto, um vivo estaria apenas confinado.

- Resposta bem viva, meu jovem.

- Para que homem abre essa cova? – Tornei a perguntar ao coveiro.

- Para homem nenhum. – Respondeu.

- Para que mulher, então?

- Nenhuma.

- Que Diabos, você vai enterrar aí afinal?

- Algo que foi homem, mas que Deus o tenha, está morto! – respondeu o coveiro.

Vir-me-ei para o Bruno e comentei em voz baixa:

- O patife é esperto, devemos falar com precisão, senão ele nos envolve em ambiguidades!

- Aí coveiro você sabe quanto tempo um corpo demora a apodrecer depois que morre? – Bruno perguntou.

O coveiro pensou um pouco e respondeu de maneira lúdica:

- Olha meu jovem, se já não estiver podre antes de morrer... Hoje tem muita gente pestilenta que nem morreu ainda e já está completamente podre. Olha vê esse crânio – O coveiro desenterrou outro e o suspendeu para vermos – este era um maluco filho da puta, estava enterrado aqui há uns dezesseis anos, de quem pensa que é?

- De quem era? – Bruno e eu perguntamos.

- Que o Inferno nunca abandone este palhaço louco! Uma vez derramou uma garrafa inteira de guaraná na minha cabeça. Este crânio é do palhaço Espirro, que tinha um pequeno circo aqui em Irajá.

- Esse aí? – Apontei para o crânio na mão do coveiro.

- Este aqui. – Confirmou.

- Deixe-me ver – peguei o crânio e o ergui para vê-lo melhor – Olá, pobre Espirro! Eu assisti ao espetáculo dele quando criança, Bruno. Era um sujeito de infinita graça e de espantosa fantasia. Por mil vezes me fez rir durante sua apresentação e hoje me causa horror só em lembrar! Me revolta o estômago! Onde estão suas piadas palhaço Espirro? Suas cambalhotas? Seus lampejos de alegria que faziam todas as crianças riem? Nem uma gracinha mais? Hein? Que falta de humor! Olha palhaço Espirro porque você não vai até o quarto daquela loira arrogante da faculdade e diz para ela que por mais que ela passe dois dedos de espessuras de maquiagem no rosto o resultado final será exatamente este aqui; vê se ela rir disso! Bruno, me diz uma coisa...

- Sim...

- Você acha que Alexandre, O Grande e Trajano também ficaram assim embaixo da terra?

- Sim, com certeza!

- E, fedia assim?

- Exatamente assim!

Joguei o crânio fora, perguntei ao Bruno:

- Afinal já são que horas?

- Quatro horas da tarde! Está em cima da hora do enterro.

- Não! Está na precisão da nossa hora! – Corrigi.

Deixamos o coveiro com o seu árduo trabalho e, andamos em direção ao local onde seria velado o nosso amigo.

Estávamos ao redor do caixão enquanto o Sacerdote citava a plenos pulmões um trecho do livro de coríntios:

- E, se Cristo não foi ressuscitado, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé. E assim somos também considerados como falsas testemunhas de Deus que ele ressuscitou a Cristo, ao qual, porém, não ressuscitou, se, na verdade, os mortos não são ressuscitados. Porque, se os mortos não são ressuscitados, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé, e ainda estais nos vossos pecados. – e depois aos berros disse: - ainda que esteja morto viverá, viverá!

Bruno e eu estávamos um pouco afastados, pois os familiares ficavam por direito mais próximos ao caixão.

- Ele está gritando tanto que eu pensei que o T*** fosse sair andando de lá. – Brincou Bruno.

- Eu não gostaria que meu enterro fosse assim – Eu disse.

- E você gostaria que fosse como?

- Sei lá, quando eu partir não gostaria que tivesse sacristão dobrando sino ou flores sobre minha sepultura ou que alguém despeje hipocrisias dizendo o quão bonzinho eu fui durante esta vida...

- Quanta besteira! – interrompeu-me Bruno – Depois que você morrer, você não estará mais aqui para escolher ou presenciar o que vão fazer com o seu corpo. Você não precisa de preferências para quando não puder mais ter preferências.

- É a pura verdade. Então, quando eu partir podem rezar latim sobre o meu caixão ou cantar e dançar ao seu redor, afinal de contas; morto, enterrado!

- Morto, enterrado! – complementou Bruno.

Bruno e eu nos aproximamos do caixão para deixar flores. Olhei para o corpo de T*** e principiei a recitar um poema de Baudelaire:

- “Vivemos pela morte e só ela que afaga;

É a única esperança e o mais alto prazer,

Que como um elixir nos transporta, e embriaga,

E nos faz caminhar até o anoitecer.”

- Cara, um “descanse em paz” já é suficiente! – Disse-me Bruno.

- É eu também acho.

- Descanse em paz! – dissemos.

Diogo Abreu
Enviado por Diogo Abreu em 02/07/2012
Código do texto: T3756843
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