Misantropo
Mais um dia de gente. Com esse populacho habitando as calçadas, se esbarrando feito gado levado em caminhões, que sacolejam e dão encontrões desagradáveis. Olhares vazios de corpos cheios de nada. Aquela cabeça que segue em minha frente, com cabelos esvoaçantes, uma medusa que tenta me seduzir, só que sou petrificado muito antes de tê-la encontrado. Crianças correm com esses sorrisos de fim da infância. Os guris maltrapilhos já sorriem com a mesma malícia dos velhotes malandros. Narizes que deixam escorrer um muco que ignora essa estética burguesa. Forma uma outra tonalidade nessa paisagem, são a periferia, os que vivem ao redor do sonho fabricado, contemplando narizes limpos, roupas com aroma nauseante de amaciante, vestimentas engomadas que deixam todos quadriláteros.
Os cães tem mais dignidade, lambendo seu sexo, trepando em disputas ferozes com pretendes libidinosos. Por mais que rastejemos de quatro por um período, — alguns prolongam-se no rastejar — jamais teremos essa coragem, salvo os que se fazem loucos, mas esses se coçam até de pulgas que nunca tiveram. Sem pelos, cada vez mais despelados, ainda insatisfeitos com o pouco que resta, nos raspamos, depilamos, nos fazemos ainda mais nus, embora não deixemos de vestir esse substituto da proteção natural, nos artificializando com peles de outros animais ou nos servindo de alguma matéria prima industrial que nos plastifica. Bonecos produzidos em série, “crescei-vos e multiplicai-vos”. Seguimos a risca com ejaculações cronometradas, rostos virados pro lado e a indiferença com o parceiro que dorme tentando encostar o mínimo em nós.
Esses pelos que desprendem dos corpos, num processo de depilação contínuo, entupindo ralos, deixando uma cama repleta cabelos pequenos, demonstrando que um ato sexual ocorrera ali. O odor de sêmen semelhante a produto de limpeza, pois já associamos nossos odores ao artificial, nossos aromas são dissimulados. Temos mais desejo sexual pelas bonecas virtuais, não apenas as da web, como também as infláveis ou as produzidas na mente no ato masturbatório. Pois o conto real causa nojo, repugnância, as secreções fedem e nos sentimos animalesco, o que desejamos a todo momento negar, por isso nos civilizamos. Cães grudados nas ruas são algo horrendo, por isso vamos enxotá-los, não queremos esse espetáculo grotesco, desejamos viver nosso mundo de ficção, assexuado. Invaginados.
Os esgotos nos fazem relembrar o quantos somos contagiosos. Com sua memória aromática, adentra os lares e corrompe os narizes mais sensíveis. Nós produzimos as fezes que evitamos com dutos que as levam para o mais longe, ou seja, o rio que irá servir de fonte de água potável. Ingerimos as fezes, os vômitos, os restos de comida, os animais mortos, os cadáveres de crimes investigados ou não. E que delícia o sabor da água puramente tratada com cloro, onde sentimos o sabor da bebida dita insípida. Por mais que filtremos, teremos engolido essa pútrida porção de nós mesmos. A nata é espessa demais para ser coada. nem humano como gostaríamos, nem animal como temos anseio em detestar. O ato de urinar em postes não nos faz mais caninos, apenas exalamos esse cheiro forte de enxofre da urina. Pênis recolhidos as pressas para dentro das calças. Mulheres de cócoras feito cadelas, nem pensar.
Os ruminantes defecam com um desdém que nos causa inveja, só em criança enchemos as fraldas ou mesmo o ambiente em que estamos alojados, sem nos importarmos. No máximo reclamamos exigindo a limpeza imposta pela higienização, pois em uma sociedade limpa, alguém precisa se sujar de bosta. Existe sempre aquele que executa a tarefa, sejam pais, enfermeiros, garis. Nós limpamos uma fração da sujeira que fazemos e deixamos o resto para responsabilidade alheia. O sexo é sujo, daí a necessidade de limpeza posterior ao ato, as ejaculações dentro da mulher já estão no recipiente adequado, pois desde a mitologia que as comparam a vasos, urnas, privadas, pois são elas relacionadas ao “oikos”. Já menstruam expondo odores mais indignos, com aquele sangue coalhado que escorre sem pedir permissão. e os homens não podem cheiras os traseiros menstruados, em vez tapam os narizes e só sentem o aroma da própria merda, que vez ou outra, por conta de entupimento da rede de esgoto, se depara com os excrementos retornando e ele acaba tendo que colocar sujar as mãos mais do que gostaria.
Nos bancos escolares as crianças são colocadas retas, filas em linhas que seguem o ritmo do encontro sem se esbarrarem. Rotos diante do quadro negro que engole a visão do público e emprega formas que serão apagadas, como qualquer desejo além daqueles incutidos. O giz contorna enquanto o sujeito se transforma, podendo ocupar o lugar daquele que traça, criando novos grupos de socialização com pouco contato, é permitido tocar com força, quando agarrado por um delito, sentindo a força da repressão que encerra o sujeito dentro de uma jaula, não muito diferente da que ele habita e chama de casa. Só que agora com o seu ir e vir mais limitado.
Em passeatas e grandes manifestações existe aquela união por um objetivo comum, não toca um outro daqueles seres nojentos, mais uma extensão de si, que se prolonga, inundando em uma onda de gente, que possui uniforme e grita em coro. Só que geralmente as necessidades são menos necessárias, diferente de formigas na luta pela sobrevida da espécie. Nós temos ideais, como seres politizados que somos. A busca desesperada pelo além nos levou a uma transformação ou estagnação decrépita. Estagnamos naquilo que somos e investimos sentimento naquilo que nunca teremos. Nos dividimos, saímos da espécie e caímos em subgrupos, nos chamamos raças, etnias, tribos, andando em bandos. Bandido sempre é o do outro bando, mas todos continuam cagando, gozando, menstruando, urinando, mergulhados nesse esgoto chamado vida, encharcados de bosta a ponto de jamais conseguirem a limpeza total, aguardando a decomposição final, adubo orgânico, chorume poluente, lixo é igual a gente.