O Médico e o Monstro
Quando era criança, meu desejo era ser médico, salvar vidas, curar pessoas. Quando cresci consegui realizar o sonho, coisa que poucos conseguem. Com o amadurecimento dentro da academia, mais ainda nos últimos anos, em que lidava diretamente com a prática de atendimentos emergenciais, ainda mais, após me formar e começar a exercer a profissão. Descobri que o sonho poderia se tornar pesadelo, que matava ao invés de salvar e infectava ao contrário de curar. Foi quando me dei conta do que era.
O médico é aquele que em um momento está no Paraíso, sendo enaltecido com louros por dar dignidade as pessoas, no outro habita o Inferno, onde é repudiado e comparado ao monstro mais deseumano. Uma espécie de Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Só que nesse caso, nunca somos um ou outro, vivemos nesse limbo intermediário, onde somos conhecidos sempre por um dos dois extremos e esquecidos como o que realmente somos, que é a substância que habita o meio.
O médico que pretende ser um anjo, se equivoca, pois não tem permissão de permanecer por toda sua existência no Céu, apenas terá breves momentos de contemplar esse outro Olimpo, sempre ciente de que logo estará nos domínios de Hades. É o anjo que conforta as famílias e opera milagres quando cura com sua ciência, aliada a perícia técnica. Mas também despenca rumo às profundezas, onde tortura e mutila, causando danos que o faz ser o mais odiado demônio que possa existir.
O traje branco não representa a luz, não se enganem. Nem mesmo a chama que arde, mas apenas a apatia diante do que lhe foge, pois não sabe quando o pêndulo vai oscilar e passará de amado a odiado em um instante. É monstro porque não pode ser humano, ou é comparado ao divino, por sua saúde idealizada, ou será comparado a algo asqueroso, por ter o domínio do bem e fazer o mal.
Mas o médico não é bom e nem mau, antes imoral, um ser que foge do certo e errado, pois uma hora ou outra terá que agir dessa ou daquela maneira. Não pode apenas escolher um dos lados, pois as escolhas não lhe pertencem, apenas é instrumentalizado diante de um caos que o envolve, tornando-o um ícone, um símbolo daquilo que se almeja ou repudia. Não deve chorar quando os outros choram, nem rir em meio a gargalhadas, seu papel é ser apático, sua função está em desaparecer, só voltando à tona no momento de ser glorificado ou crucificado.
Todo o médico deve aprender com Mr. Hyde a ser monstro, pois só se desumanizando que conseguirá servir a humanidade. Quando está com seus familiares, fora dos corredores de hospitais, volta a ser homem, mas perde aquele envoltório que o faz transcender como espectro, que flutua com trajes brancos diante dos leitos dos moribundos. É quando pode até se tornar paciente e sentir aquele incômodo de amor e ódio por aquele que lhe atender, pois volta a ser humano e por mais que considere a técnica, sem a fantasia, perde sua majestade e tornar-se um mero crente, devoto, seja para adorar ou abominar esse monstro que tanto fascina.