NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 92
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 92
Rangel Alves da Costa*
Certamente que o rapaz contratado para vigiar Jozué não teria chegado a ele ao acaso. Foi o advogado Auto Valente que na sua perspicácia maldosa delineou esse possível encontro. Repassou as informações sobre a sua aparência e indicou o endereço da casinha aonde havia morado com sua mãe, Dona Leontina. Estando solto, mais cedo ou mais tarde ele irá aparecer por lá, então será fácil reconhecê-lo. Foi a síntese que fez. E realmente assim aconteceu.
Quando Jozué já havia descido o Cafundó do Judas e agora caminhava sem destino, o seu vigilante seguiu atrás, observando cada passo de longe, só esperando o momento certo para se aproximar. Viu quando o ex-presidiário parou diante de uma obra em construção e fez perguntas aos trabalhadores; enxergou quando ele parou diante de um jardim e lançou algumas palavras à madame; viu quando ele falou com um senhor que arrumava mesas numa lanchonete.
Não sabia do que se tratava, mas se estivesse mais perto ouviria em cada uma daquelas situações um pedido de emprego, uma pergunta se precisava de alguém para fazer isso ou aquilo. Com o rapaz caminhando em frente, virando esquinas e cruzando ruas, sabia que numa determinada hora ele pararia em algum lugar para descansar. E isto se deu numa praça.
Talvez Jozué estivesse um pouco cansado, pois entrou na praça e foi procurar o banco mais afastado que havia para deitar por instantes. Estava desolado, entristecido, um tanto desesperançoso e preocupado com seu futuro. Sabia que do jeito que estava, apenas jogado no mundo feito um mendigo, um à toa, errante sem perspectiva alguma, não poderia continuar. E com tais pensamentos sentou no banco antes de estender-se nele completamente.
Nesse momento o outro rapaz que vinha em seu encalço aproximou-se como quem apenas iria passar por ali. Fez uma pergunta qualquer pra disfarçar e depois pediu licença para sentar um pouco. Não demorou muito e começou a fazer perguntas sobre a vida pessoal do ex-presidiário. E este, já angustiado demais, tendo a oportunidade de falar sobre a sua inocência e a injustiça que haviam feito, começou a dizer tudo, a falar despreocupadamente. E o outro ouvia tudo atenciosamente, esperando somente o momento ideal para começar dar o bote.
Depois de ouvir aquela história triste, e ele mesmo ficar indignado com a situação, até pensou duas vezes em levar adiante o que haviam mandado fazer. Mas estava cumprindo ordens, sendo pago para tal, com dinheiro ainda por receber. E por isto mesmo começou a colocar em prática o nefasto plano. E disse:
“Sinto muito pelo que fizeram com você. É só um pouco da maldade que estamos expostos. Essas pessoas que fizeram isso com você é que deveriam apodrecer na cadeia, adoecer de doença de rato pra pagar tanta perversidade. E imagino o que você não deve estar sofrendo agora, meu amigo. Desculpe por chamar assim, meu amigo, mas é que conheço as pessoas boas e quando dizem a verdade. E você é um grande homem que não deveria estar passando por isso não. Na verdade, depois do que ouvi gostaria demais de poder lhe ajudar, mas o problema é que não sou nem daqui, mas de outro estado. Também, com medo da violência e dos assaltos que são tantos, não saí com qualquer dinheiro que pudesse lhe ajudar. Juro por tudo que neste momento, a não ser a roupa do corpo, não tenho mais nada que pudesse repassar e aliviar por alguns instantes seu sofrimento. Sei que deve estar com fome e sede, que precisa adquirir uma ou outra coisa, mas sinto muito meu amigo. A não ser que...”.
E o bote viria agora. A maldade, a crueldade, a malícia, se expressaria nesse próximo segundo. E ele continuou:
“A não ser que o amigo não se incomode e aceite essa arma que carrego na cintura pra me proteger”. Espantado, Jozué deu um pulo quando viu o rapaz colocar a mão na cintura e puxar de lá o revólver. “Calma, calma, não tenha medo, pois é só pra mostrar o que terei o maior prazer em deixar em sua mão como presente. Essa arma, que já está com o pente carregado, e também um pacote de balas que trago aqui no bolso”. E puxou um pequeno embrulho. Diante do ainda assustado Jozué, prosseguiu:
“Como é um presente que estou oferecendo, a partir de agora você poderá dispor dessa arma como quiser. Contudo, e creio que nem precisaria dizer isso, peço que pelo amor de Deus não faça nenhuma besteira, não a utilize para o mal e nem para se prejudicar depois. Mais do que ninguém você conhece as durezas de uma penitenciária, e por isso mesmo procure não errar. Mas até que você consiga um emprego ou qualquer coisa assim, ela será muito útil, pois vagando sem destino, dormindo em qualquer lugar, ao menos intimidará quem quiser se aproximar para lhe ofender. Mas tome aqui, guarde com muito cuidado e procure fazer uso somente se extremamente necessário. Do contrário, nem pensar. E agora até, pois já estou atrasado. Boa sorte amigo”.
E deixou Jozué pasmo, lívido, completamente desnorteado, em pé com a arma em punho. Não deu nem tempo para que dissesse se aceitava ou não, para expressar qualquer coisa, e foi embora assim que entregou o revólver, sumindo em seguida. E agora? Começou a se indagar depois que sentou novamente, continuando com a arma na mão. Mas cinco minutos depois já estava com ela na cintura e o pacote com outras munições no bolso.
Durante alguns dias, muitas vezes até esquecia que mantinha aquela arma na cintura. Contudo, com o passar do tempo, a desalento e a desesperança aumentando, sentindo-se injustiçado demais por já ter sido preso inocentemente e ainda estando condenado em plena liberdade, começou a colocar na cabeça pensamentos ruins, negativos, perigosos demais. Eis que o plano do advogado e do parlamentar começava a frutificar.
Precisando de roupa, de comida e de outros objetos de uso pessoal, de arma em punho fez dois assaltos no primeiro dia que decidiu usá-la para esse fim. Depois disso, não querendo mais dormir pelas ruas, procurou alugar um barraco num lugar distante por uma ninharia. Só saía de lá ao anoitecer, com a arma na cintura. Numa dessas andanças criminosas, surpreendeu-se ao abordar um rapaz para assaltar e em seguida reconhecer na vítima aquele mesmo rapaz que havia lhe dado a arma como presente.
Agora já era tarde demais. Pensou. O problema é que o rapaz, que o estava vigiando para dar boas notícias ao deputado, acabou reagindo e levou um tiro. Do hospital mandou avisar ao seu chefe que não demoraria muito para Jozué ser preso novamente. Com isto, ainda que de forma inesperada, estavam alcançando os objetivos.
Dois dias depois, após atingir com dois tiros mais uma vítima que reagiu a assalto, Jozué tentou se esconder por trás do morro onde morava, porém já era tarde demais. Perseguido, cercado, ainda chegou a disparar contra os policiais, mas foi atingido no pé esquerdo e feito prisioneiro. E logo o ex-presidiário voltaria ao poço do sofrimento como reincidente, certamente apenado com o castigo mais duro que possa existir: a absoluta certeza que sua vida não valia mais nada.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com