NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 91
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 91
Rangel Alves da Costa*
Admirado consigo mesmo ali retratado, na fotografia que era a coisa que sua falecida mãe mais apreciava no mundo, Jozué nem percebeu quando a nova moradora da casa se aproximou um tanto que espantada com aquele estranho tão entretido olhando pra sua parede.
“Desculpe, minha senhora, é que esse aí...”. Mas nem conseguiu terminar a frase porque a velha senhora se adiantou:
“A casa é muito pobe e quano vim morar aqui, adespoi que a antiga moradora morreu e num deixou famia pa continuá o alugué, entonce achei esse retrato, que tarvez seja de argum parente dela e botei aí cuma infeite de parede de pobe. Mai na verdade num sei nem de quem se trata, mai me parece ser um rapaizinho muito bom, embora meio entistecido por quarqué coisa. E pelo jeito vosmicê tomem se admirou com ele, num foi mermo?”.
Ainda se olhando no retrato adiante, chorando por dentro, querendo gritar, Jozué apenas respondeu: “Eu conhecia esse rapazinho minha senhora, conhecia muito ele. Ele não era assim triste não, mas agora deve ter ficado mesmo, principalmente depois que sua mãe morreu e do que andaram fazendo com ele. Coitado, a essa hora deve tá por aí procurando o próprio destino, ou o destino procurando ele pra dizer qual vai ser o seu próximo sofrimento...”.
E foi interrompido pela senhora de lenço encardido na cabeça: “Oiando bem, oiando mais direitim inté que vosmicê tem as aparença dele. Parece demai e se vosmicê tivesse com a cara mais arrumada certamente que iam dizê que a cara de um é o focinho do outo. Pa vosmicê vê cuma é as coisa da vida, um retrato de um desconhecido pareceno demai com quem de repente bate na porta da gente”.
A velha senhora não podia enxergar, até porque Jozué tomava um pouco sua visão da rua, mas lá fora duas mulheres, vizinhas de trecho, amigas do rapaz de outros tempos, se desesperavam gesticulando para que ela não conversasse com ele, não lhe desse atenção, mandasse ir embora. E uma juntava uma mão na outra tentando dizer que ele queria roubar; já a outra chegou a gesticular com o dedo querendo dar a entender que ele poderia estar armado e poderia atirar.
Como a senhora não podia ver nem entender nada do que se passava na calçada do outro lado, acabou perguntando o que ele afinal de contas queria ali, batendo à porta da casa talvez mais empobrecida da rua ou de todo o Cafundó do Judas. Então Jozué, ainda completamente tomado pela visão da fotografia, disse baixinho:
“Conheci muito a senhora que morava nessa casa e ela era tão boa quanto a senhora parece ser. Não sei porque, mas parece que a riqueza maior faz moradia sempre nos corações mais pobres, pois são essas pessoas menos afortunadas que não negam a quem tem fome e sede, e muitas vezes dividem o único pão que tem com o próximo. Por isso que são pobres, mas são as pessoas mais felizes do mundo, pois encontram essa imensa felicidade cada vez que podem fazer uma caridade. Na verdade, minha senhora, estou com muita fome e com muita sede, mas ficarei muito agradecido se me trouxer uma caneca de água”.
Foi convidado a entrar pra comer um pouco de feijão com farinha e ovo. Sorriu por fora e por dentro quando ouviu a menção de comida, mas disse que se ela não se importasse comeria ali mesmo na sala. Não queria entrar para não recordar ainda mais, não encontrar pedaços seus e de seus pais, não relembrar os bons tempos que morou ali.
Lá fora, na calçada, o grupo de pessoas já era maior, com cinco ou seis donas de casa quase a ponto de gritar para que a velha não oferecesse nada ao perigoso rapaz e o fizesse sair logo dali, de modo que deixasse rapidamente a comunidade, para a paz e sossego de todos. Ao menos era assim que pensavam e se sentiam, como pessoas que encontram a felicidade julgando falsamente pessoas inocentes. Mas como nem a senhora nem Jozué percebiam nada da aperreação lá fora, este comeu com o maior gosto do mundo, bebeu dois copos de água e depois se despediu com um abraço.
Ao vê-lo abraçando a velha senhora comentaram do outro lado que seria naquele instante que ele iria esfaqueá-la, enforcá-la ou até estuprá-la. E já iam correndo em direção à casa quando ele irrompeu porta afora, para espanto de todas, que se espalharam em correria, dando topadas, se esbagaçando pelo chão. Mais uma vez ele achou estranho demais tudo aquilo e resolveu ir embora. Até que pensou em tentar conversar com outras pessoas, mas disse a si mesmo que já que estavam lhe evitando, então seria melhor não insistir.
Antes de virar a esquina olhou pra trás, mirou novamente a casinho que havia sido moradia. Sabia que dificilmente retornaria ali, que botaria novamente os pés naquele chão que tanto havia corrido brincando, chutando bola, numa multidão de pequeninos amigos. Levou a mão aos olhos e enxugou a lágrima que enfim caiu, e seguiu em frente sem saber aonde ir agora.
Não sabia, contudo, que desde o instante que havia chegado ao local, à ruazinha de sua casa, havia uma pessoa lhe vigiando ao longe, seguindo com o olhar cada passo que dava. Era um rapaz contratado pelo Deputado Serapião Procópio que, atendendo sugestão do advogado, mandou investigá-lo para saber se estando solto apresentaria algum perigo para os envolvidos na sua condenação. O medo era grande demais, e por isso mesmo era preciso cautela diante dessa nova situação, ou seja, do condenado em liberdade.
Mas a intenção não era apenas vigiá-lo, segui-lo, conhecer suas intenções. Muito mais do que isso. Comentando com o nojento do parlamentar sobre o perigo que representava Jozué solto, logicamente para despistar sobre o dossiê que estouraria a qualquer momento e o deputado ainda não sabia, teve uma ideia pra lá de original.
“Nobre deputado, tenho em mim que não basta vigiar esse rapaz e saber se está tramando alguma revanche, algum revide contra nós. Até quando faremos isso? No meu entendimento, a melhor coisa a se fazer paralelamente ao conhecimento de seus passos é tentar levá-lo de volta à prisão. E isto só poderá ser feito se voltar a delinqüir, se reincidir, se praticar algum delito grave que seja novamente condenado. E tenho uma ideia a esse respeito, coisa até fácil demais a se fazer. Veja bem, entregue uma arma a esse rapaz que contratou para vigiá-lo, diga a ele para arranjar alguma forma de dar a arma ao ex-presidiário, de presente mesmo, como coisa de bom amigo. Depois disso pode deixá-lo à vontade com a arma recebida que logo virão os resultados que esperamos. Certamente o mesmo não suportará viver rejeitado, sem conseguir qualquer emprego, faminto e à toa, e para começar a fazer uso da arma será um pulo. E quando menos se esperar já estará assaltando à mão armada, praticando latrocínio, matando para roubar. E aí pronto, não haverá mais jeito, pois apodrecerá na penitenciária”.
Ora, mas o parlamentar até prometeu um presentinho extra ao advogado pela brilhante ideia. E por isso mesmo o contratado não estava apenas vigiando os passos de Josué, mas também buscando momento ideal para iniciar uma falsa amizade e oferecer a arma.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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