NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 89

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 89

Rangel Alves da Costa*

Jozué estava passando por uma panificação, faminto, pediu um pão e lhe foi negado. Sem demonstrar aborrecimento com a negativa, perguntou se o proprietário queria que ele prestasse algum serviço rápido em troca daquele alimento.

“Nem que o lixo estivesse espalhado por aqui queria você nas minhas dependências. E saia logo daqui para não espantar meus fregueses; Já pensou se chegam e encontram essa miséria igual a você aqui na minha porta? Vá, saia logo, tome o caminho do seu lixão que lugar de rato, mendigo e maltrapilho é no lixão. E é bom sair logo senão chamo a polícia e digo que você tentou assaltar”. Foi a resposta ouvida.

Um pouco mais tarde, já tendo escurecido completamente e a fome tendo aumentado muito, pela primeira vez se viu na necessidade de bater às portas e tocar campainhas. Mas nem um pão, um resto de comida, qualquer coisa, senão insultos, xingamentos, gente dizendo que naquela hora que a família estava reunida no jantar não atenderia mendigos. Nem àquela hora nem em qualquer outra.

Cinco, seis, dez portas, e nenhum pedacinho de nada, sequer um resto de pão adormecido, uma sobra de almoço do meio dia. E numa dessas vezes de desacolhida, viu em seguida quando uma gorda mulher trouxe para calçada um saco de lixo, tendo uma coisa parecendo gordurosa por dentro. E logo imaginou que poderia ser um resto de comida. E realmente era. E era a primeira vez que se alimentava de comida catada no lixo, saborosamente deliciada ao lado de ratos, que também já haviam acorrido para o local.

Era apenas um resto de macarrão com arroz e um pedaço de gordura ainda preservados numa espécie de marmita plástica. Com a mão mesmo satisfez a fome e seguiu adiante, em busca de qualquer lugar onde pudesse passar a noite. Andou um bocado até encontrar uma pequena praça, de estilo interiorano, tendo ao centro um pequeno coreto. Aproximou-se devagarzinho, na expectativa de já encontrar gente por ali e até se benzeu quando percebeu que o seu lar daquela noite estava vazio.

Praticamente não havia nenhum movimento ao redor, num silêncio cortado apenas pelo barulho dos veículos que passavam nas vias laterais. De vez em quando, apenas uma ou outra pessoa passava apressada, talvez com medo daquele ambiente. E logo imaginou que seria muito perigoso dormir ali, sem conhecer nada e sem saber se os maldosos da meia-noite em diante iriam aparecer.

Não tinha relógio, por perto não havia ninguém que pudesse perguntar a hora, mas ouviu ao longe o badalar de um relógio de igreja. Pelo único toque dado sabia que era meia hora, mas não de qual hora. Então esperou a meia hora seguinte quando os sons se completariam para anunciar o tempo que passava. Bastava contar as badaladas e ter o seu relógio. E instantes depois ouviu oito badaladas.

Com o tempo aberto, sem ameaças de chuvas no alto, até com uma lua namoradeira brilhando bonita, resolveu sentar um pouco na escadinha cimentada do coreto e ficar olhando aquela luz lá em cima, luzir da lua que passeava ali e igualmente se derramava nos mais distantes e inimagináveis lugares. Estava nesse instante brilhando por cima de pessoas felizes, apaixonadas, solitárias, atormentadas pela desilusão. A mesma lua que tinha o dom de trazer à mente de Jozué um pensamento bom, lembranças boas, instantes de prazer pela vida, coisas que há muito não sentia.

Logo ao amanhecer procurou se banhar em qualquer fonte, em qualquer lugar onde tivesse um pouco de água para jogar sobre o corpo e vestir outra roupa igualmente rasgada que trazia numa sacolinha, herança da penitenciária, pois foi a única coisa que lhe deram ao sair. E quando o sol já estava mostrando toda sua face no dia, o andante solitário, ainda que no meio do povo, cortava caminho em direção à comunidade que havia morado, aonde convivera com sua mãe, aonde, em tempos de liberdade, havia feito muitos amigos. É nessa direção que seguia, rumo ao Cafundó do Judas. Sua esperança era que mesmo não possuindo mais aquela porta aberta, os vizinhos e amigos pudessem ajudá-lo naquela situação.

Contudo, não sabia do estigma preconceituoso que lhe aguardava, da aversão criada pelo povo que já o havia sentenciado desde o instante que fora injustamente preso. E agora, sem sequer a sua mãe estar mais ali, então seria o momento de desconhecê-lo totalmente, de condená-lo à pena de desterro da comunidade na qual cresceu e convivia. Mas por que um preceito tão grande diante de um inocente? Simplesmente pelo fato de haver passado pela penitenciaria. Só isso. E por outras razões. Urge dizer algo a esse respeito.

Preconceito é uma postura ou ideia preconcebida, uma atitude de estranheza e rejeição imposta pela sociedade perante os seus próprios membros. É ter conceito ou opinião sobre alguém, antes de ter o conhecimento claro e profundo sobre a sua realidade. Tem-se, assim, que o preconceito é uma ideia ou uma opinião negativa sobre um grupo de pessoas ou sobre determinado assunto, formada de modo precipitado, sem conhecimento profundo e reflexão necessária. Não somente isto, pois o preconceito leva à discriminação, à exclusão e à violência. Numa concepção realista, tem-se que o preconceito leva sempre à discriminação.

É unanimidade entre os estudiosos a afirmativa segundo a qual é assustador ver as proporções que o preconceito vem alcançando sem que as pessoas se deem conta, pois está mascarado no cotidiano. Manifesta-se num vasto leque de situações. Determinadas pessoas de classes sociais elevadas discriminam pessoas empobrecidas, moradoras em barracos, em favelas, pois cismam em ver nelas a própria marginalidade. E quando o pobre, o favelado, o morador do barraco é um ex-presidiário, então a situação se agrava mais ainda.

Como num diário do absurdo, tem-se que o sofrimento do ex-presidiário começa logo na saída da prisão. É jogado pra fora, no outro mundo, quase que com apenas com a roupa do corpo. Sem dinheiro, documentos ou perspectivas de trabalho, o ex-detento regressa à sociedade mais vulnerável do que quando entrou na cadeia. Com um agravante: o estigma de ter sido uma pessoa que cumpriu pena.

E é por isso que os que alcançam a ilusória liberdade têm que se acostumar continuar vivendo com o mesmo processo desumanizador sofrido atrás dos muros. O sujeito em si não existirá mais, vai se extinguindo aos poucos, sendo despersonalizado, conhecido apenas por uma gíria. Está livre, mas está preso ao mesmo tempo. E como está acostumado a comer nojeiras nas penitenciárias que as ruas não oferecem, então sentem desejo de retornar.

Verdade é que grande parte da população vê o ex-presidiário como se fosse um doente contagioso, um ser perigoso, uma pessoa que pode a qualquer momento voltar a fazer aquilo pelo que foi condenado. Esse olhar enojado diante do egresso é quase uma unanimidade, até mesmo entre os próprios familiares do ex-presidiário. Pesquisas apontam que os ex-presidiários são o grupo que menos as pessoas gostariam de encontrar ou ver. Queiram aceitar ou não, mas a verdade é que eles causam repulsa, aversão, medo, distanciamento

E as consequencias desse preconceito contra os ex-presidiários são claras. Depois de solto, o ex-presidiário continua a sofrer o mesmo preconceito de quando estava na prisão. Passa a ser conhecido, na gíria, como o ‘cadeia’, como aquele marginalzinho, como o imprestável, como o ladrão ou o assassino. E não somente isto, pois o isolamento é a agressão maior que recebe. Não é à toa que muitos ex-presidiários passam a praticar outros crimes só para voltar para a penitenciária e ter o que comer e onde dormir.

Negar-lhe o reconhecimento da dignidade, do seu valor e, principalmente, chance de trabalhar para sobreviver com decência são também formas usuais de preconceito. Verdade é que ao reingressar na sociedade dificilmente a pessoa consegue entrar no mercado de trabalho. E a isto se acrescente o fato de não ter preparação, ter perdido suas habilidades pela inoperância, não ter recebido qualificação enquanto esteve preso.

Outro dado inegável é que as pessoas não acreditam na possibilidade de recuperação dos ex-presidiários. Tendo-os por irrecuperáveis, continuarão vendo-os como marginais, bandidos, ladrões, assassinos, delinqüentes comuns. Esse preconceito faz com que a própria sociedade acabe estimulando a criminalidade e, imperceptivelmente, aja para que realmente as reincidências sejam conseqüências normais.

E ao colocar o pé na rua onde morou por muitos anos, Jozué logo sentiria na pele o olhar e o agir preconceituoso de uma comunidade também já socialmente discriminada.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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