NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 86
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 86
Rangel Alves da Costa*
Diante da ordem emanada diretamente do tribunal, decisão originária do desembargador corregedor, o juiz da vara de execução não teve sequer possibilidade de questionar nada e apenas ordenar que o apenado Jozué Miguel dos Santos fosse imediatamente colocado em liberdade. E liberdade definitiva, colocado de volta ao convívio social, porém certamente entregue a outras dores. As dores do mundo.
Quando foi procurado e informado que deveria imediatamente reunir, juntar num saco o que tivesse, pois o cumprimento de sua pena já havia terminado, o rapaz não esboçou qualquer tipo de reação. Já estava aceitando aquela sina com normalidade, alheio a qualquer preocupação com a liberdade e com o mundo lá fora. Afinal, qual mundo encontraria lá fora?
Pelo que lhe restava de consciência pensante, não tinha nenhum familiar lá fora para pedir guarida, sua mãe já havia falecido e a casinha onde moravam de aluguel já estaria com outros moradores, não conhecia ninguém que pudesse ir bater às portas. Além disso, sabia que não tinha mais amigos, pessoas que pudessem fazer nada para ajudá-lo. E então, fazer o que no mundo lá fora?
Certamente perambularia sem destino, se arranjaria em qualquer lugar, repousaria embaixo de marquises, em vãos abandonados, em qualquer canto de rua que lhe servisse de abrigo. Teria que pedir, esmolar, erguer a mão feito um pedinte para saciar a fome e matar a sede. Contudo, como esse primeiro sofrimento não poderia perdurar, teria que pedir emprego, implorar para que aceitasse lavar um jardim, um carro, carregar lixo, mexer em areia e cimento, carregar telhas e tijolos de um canto para o outro. Mas conseguiria?
O problema maior era que tudo teria de fazer para se comportar apenas como um indigente, um mendigo, um abandonado pela sorte. E isto porque seria ainda mais difícil e complicado se alguém ao menos sonhasse que ali estava um ex-presidiário, alguém que certamente praticou um erro de maior gravidade e por isso mesmo havia sido condenado. E sendo visto como ex-presidiário, além de não conseguir sequer um trabalho de zelador de jardim, corria o risco de ninguém querer lhe falar, passar por perto de onde estivesse, se aproximar do animal talvez doente, raivoso, leproso, contagioso.
Durante o tempo da prisão, tanto na primeira como na segunda penitenciária, não havia exercitado qualquer tipo de trabalho, de profissão, tão pouco aprendido qualquer nova atividade profissional. Se não havia sequer tratamento de saúde, como se esperaria algo que servisse para o seu futuro? Esteve o tempo todo ali apenas jogado, esquecido, sofrendo, sem que jamais lhe fosse oferecido nada em termos de reeducação, ressocialização ou coisa parecida.
Mas a lei não diz que a finalidade do cumprimento da pena não é apenas o encarceramento, mas também, e principalmente, o preparo do indivíduo para o reingresso no convívio social? Mas que preparo, se ali sempre foi um zoológico imundo, um abismo animal, uma selvageria, local apropriado a preparar seres humanos para se tornarem bichos, irracionalizar o homem, diminuí-lo de tal modo que de gente só lhe restasse o nome e o número na estatística prisional?
Indubitavelmente, o sistema penitenciário não segrega os indivíduos penalizados de modo a proporcionar-lhes a ressocialização, como preceitua a legislação de execução penal, de forma a prepará-los para um futuro reingresso no meio social. Mas o que seria a tão desejada ressocialização do indivíduo apenado, cumprindo pena dentro dos muros de uma penitenciária?
Tal ressocialização significaria procurar meios para capacitar o preso para o seu reingresso na sociedade e o convívio em igualdade com as demais pessoas. Mas ressocializar não significa apenas proporcionar um afazer ao preso na prisão ou tentar garantir meios para uma colocação no mercado de trabalho quando for libertado, ou ainda agir no sentido de se evitar os costumeiros preconceitos contra os ex-presidiários. Isto porque o processo de ressocialização exige muito mais e envolve a incessante busca de reverter os valores nocivos do apenado, traduzindo-os em valores úteis para si mesmo e para a sociedade.
Seria também, através do ato de reeducar, modificar o comportamento do preso, afastando o estigma pelo mal cometido e tentando fortalecê-lo espiritual e culturalmente para os tempos futuros de reencontro com a liberdade. Entretanto, lá dentro, é isso que se considera? Como a resposta será sempre negativa, o que se verifica é a geração de um problema maior, que diz respeito às dificuldades de reinserção social e os preconceitos oriundos da eterna penalização do indivíduo.
Mas os responsáveis pelo sistema penitenciário, pelo cumprimento e acompanhamento da pena e pelas políticas de reeducação e ressocialização não querem atentar sequer para o óbvio. Não querem considerar, por exemplo, para o fato de que nas prisões o trabalho é fundamental, mas cujo objetivo não deverá se resumir a retirar a pessoa da ociosidade, mas também a abrir perspectivas de sua inserção futura na sociedade, por meio da profissionalização e da perspectiva de emprego digno. Ainda que não seja assim, mas que se cumpra a lei.
Há que se observar que os reclusos de hoje não ficarão eternamente nessa condição. Uma vez cumprida a pena, por mais prolongada que for, ele será solto e terá que voltar ao convívio da sociedade, de sua família, dos amigos ainda existentes, de tudo aquilo que teve de abdicar um dia. Mas como fará isso, se o mundo lá fora se mostrará tão estranho e até assustador, vez que acostumado a viver de forma degradante e subumana? Como enfrentar a nova realidade se não sabe mais praticar com eficiência o mesmo ofício de antes, se não sabe se será aceito num novo emprego, se nem sabe se será aceito até mesmo pela sociedade?
Fato é que o sonho da liberdade, quando alcançado, pode se transformar num pesadelo irreparável. O mundo extramuros é muito ingrato para com aqueles que cumpriram pena, que carregam consigo o estigma de ex-presidiário, que viveram trancafiados por uns tempos por um erro cometido. O pior de tudo é que a sociedade nem vai querer saber se ele pagou pelo erro que cometeu, se a própria justiça sabe que ele cumpriu integralmente sua pena. Nada disso, pois na maioria das vezes continuará sendo visto como o ladrão, o assassino, o bandido, o mais perigosos dos indivíduos.
Assim, no preconceito que é criado quando sai da prisão é que começa outro dilema sem fim para o ex-presidiário. E muitas vezes por culpa do próprio Estado que não lhe capacitou para o trabalho, não se preocupou em fazer a devida ressocialização, não considerou que um dia aquele indivíduo teria que passar daquele portão e enfrentar outra dura realidade.
Assim, se evidencia que não tem cabimento o indivíduo ficar jogado num presídio se a ressocialização, que é uma das premissas para o cumprimento de sua pena, não for considerada. Ora, é através da ressocialização que ele não se distanciará da sociedade da qual faz parte e retornará mais tarde. Assim, através desse instrumento de reinserção é que o indivíduo deveria ser capacitado para não viver, no mundo lá fora, os mesmos temores agora sofridos por Jozué.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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