NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 83

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 83

Rangel Alves da Costa*

Passaram-se três anos desde que Jozué havia sido transferido e agora, sem mais qualquer perspectiva de nada, sem receber uma visita sequer e já sem se importar se havia um mundo e uma vida lá fora ou não. Nesse processo de encarceramento, nem de longe parecia mais um ser humano capaz de mais tarde, por uma circunstância favorável da vida, ser colocado em liberdade e reintegrar-se socialmente.

Como reintegrar-se à sociedade se já havia perdido o senso de gente, de pessoa, de igual aos outros. E isso apenas para citar espiritualmente, pois se pudesse se olhar no espelho certamente ficaria espantado com o resto de semblante que lhe sobrava por cima da pele e osso. Estava numa magreza terrível, cabeludo, sem ter feito barba há muito tempo, dentes apodrecidos, a pele, ou o que restava dela, retalhada de doenças e picadas de insetos.

E também sair para onde, fazer o que, se há muito não tinha mais mãe viva e nem sabia em qual porta bater quando saísse dali? Não tinha parentes por ali, não tinha mais casa para morar, não saberia mais como encontrar os amigos, não tinha trabalho algum pra fazer e certamente lhe faltariam oportunidades. Do mesmo modo que a porta de casa estava fechada, estavam também todas as outras que pudessem acolhê-lo e oferecer uma oportunidade.

Ora, mas a prisão, o cárcere, o encarceramento não servia também como ressocialização, como reeducação, como obtenção de habilidades para o reingresso à sociedade? Os teóricos do sistema prisional não discutem tanto sobre os objetivos da pena não como um castigo cruel, mas como meio de possibilitar ao indivíduo refletir sobre o seu erro e não reincidi-lo no seu retorno ao mundo externo? Mas na verdade, qual o homem que estava se moldando dentro dos porões infernais para mais tarde jogá-lo à própria sorte?

Há de se feita mais uma indagação: Quando um ex-presidiário deixou, aos olhos de todos da sociedade, de ser sempre um ex-presidiário? E todo mundo sabe como funciona tanto a ressocialização como o reingresso. Procura-se ressocializar destruindo moral e espiritualmente o indivíduo, minando-lhe todas as suas forças físicas, tornando irreconhecível para si mesmo e perante os outros. E o seu reingresso se dá na mesma medida que se coloca um saco de lixo apodrecido de vários dias num pé de muro mais adiante. Quem vai querer se aproximar, querer tocar, sentir se ali dentro ainda resta alguma coisa com serventia?

Tal era a situação de Jozué, jogado e esquecido ali dentro e sem perspectiva alguma. E o mais doloroso e angustiante de tudo era que um aspecto na sua frágil força se reaviva cada vez mais para aumentar seu martírio. Podia estar esquecido de tudo, de si mesmo e do mundo, mas não passava um dia sem se martirizar ao recordar, e recordar cada vez mais vivamente, que estava ali, continuava ali e talvez morresse ali, mesmo sendo inocente. Completamente inocente.

Todos aqueles que estavam lutando para provar não só a sua inocência com a do já brutalmente falecido Paulo já haviam sido eliminados. E no passo que ia, podia mesmo acontecer de mais tarde, quanto sua pena já estivesse totalmente cumprida, ninguém se importar com isso, demonstrar interesse em analisar o processo de execução para perceber tal fato. E certamente chegaria o momento de progressão de regime e da mudança de cumprimento da pena em colônia agrícola e ainda assim continuaria no mesmo local, infinitamente.

Se essa era a triste e desesperadora situação de Jozué, o mundo lá fora continuava sorrindo para muitos dos seus algozes. Verdade é que o empresário que tanto lutou para dar fim a Paulo também já havia morrido. E como se sabe, o juiz sentenciante, o quase-desembargador, só faltava comer pedra e brigar com o vento; continuava enlouquecido de não reconhecer nem a família. Mas os outros iam de vento em popa, saudáveis e contentes com a vida, continuando a fazer os seus hábeis ofícios das artimanhas, das maracutaias e das maldades contra quem lhes colocasse sombras no meio do caminho.

Com estes era tudo diferente, tudo renovado e em perfeita ordem. Não havia mais tempo nem razão para relembrar o episódio da condenação dos inocentes e de tantas mortes advindas disto. Ao menos para o deputado Serapião Procópio, reeleito com folga, com estupenda votação e tendo por bandeira de campanha a defesa da moralidade nas instituições e a valorização da dignidade do ser humano.

Contudo, continuava o mesmo, a velha raposa, o grande safado, o insuperável corrupto e corruptor. Como não podia deixar de estar envolvido em alguma fraude, algum grupo criminoso, prevalecendo-se de sua função parlamentar para obter vantagens indevidas ou fazendo maracutaias para garantir gordas propinas, agora estava enredado em articulações por debaixo dos panos para aprovar uma lei absurda, já denominada pela imprensa de lei do bebezão.

Pelo projeto, cada empresário deveria adotar um deputado e assim destinar uma verba mensal diretamente ao seu gabinete, de modo que este pudesse reinvestir as verbas recolhidas em obras de caráter eminentemente social. E, podem acreditar, esta era a atividade mais séria que o nobre parlamentar estava envolvido, pois era cabeça de inúmeras quadrilhas criminosas que deixariam de queixo caído os sicilianos e os chefões da Yakuza.

E dando suporte a tais atividades extraparlamentares continuava o Dr. Auto Valente. Por não poder abandonar o barco criminoso do deputado e também por já não sentir tantos remorsos como antes pela série de crueldades e absurdos que cometera num passado recente, agora procurava apenas manter o escritório como fachada legal e se entregava de corpo e alma a assessorar as atividades ilícitas do chefe.

Lembrava de Carmen sim, e muito e constantemente, chegando mesmo a chorar e pensar novamente em suicídio, mas tudo passava no momento seguinte e então dizia a si mesmo que a vida deveria continuar. E se não podia abdicar de fazer ao mesmo tempo o lado profissional e o lado corrupto, que fosse assim mesmo, desde que dinheiro fácil continuasse entrando na sua conta.

Contudo, recebeu um telefonema que o deixou imensamente preocupado, voltando a temer uma série de coisas ao mesmo tempo. E dentre estas a de saber como seria a reação do deputado Serapião diante do fato novo.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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