NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 81

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 81

Rangel Alves da Costa*

Ainda no final desse dia, através do seu ilustre presidente, o egrégio tribunal fez circular uma ordem proibindo, até sob pena de prisão e multa de valor elevadíssimo, que todos os órgãos noticiosos, televisivos, impressos ou digitais, publicassem qualquer informação acerca daquele episódio.

Em forma de release, informou ainda o que deveria ser publicado: “Por problemas neurológicos apresentados durante a cerimônia, o ilustre desembargador que tomaria posse ficou impedido de fazê-lo. Estando agora submetido a tratamento médico para diagnóstico do quadro e parecer conclusivo sobre o seu estado de saúde”.

Na verdade, o juiz e quase-desembargador, ainda na noite de sua malfadada posse foi transferido por familiares, amarrado e amordaçado, para um centro psiquiátrico. Antes disso, nas vezes que se viu sem o esparadrapo tapando-lhe a boca gritava a todo o pulmão que tirassem aquele homem dali, mandassem aquele rapaz ir embora, pois ele estava lhe perseguindo e queria destruí-lo. Perguntado quem era, apenas respondeu que era um inocente que havia condenado.

Verdade é que, perseguido ou não, estava com sua carreira acabada, com o sonho de se tornar desembargador destruído, apenas um louco esquecido onde os insanos mais perigosos devem ficar. A gravidade do problema já havia sido diagnosticada pelo próprio desembargador corregedor, ainda no dia do ocorrido. Segundo ordenou, se aquele homem abrisse a boca novamente seria um grande risco às instituições jurídicas e aos seus honrados julgadores, e por isso mesmo deveria ser calado para sempre.

No mesmo dia que o perigoso homem foi praticamente enjaulado, tornando-se indisponível à sociedade e até aos seus familiares, o juiz da vara de execução assinou a ordem de transferência do sentenciado Jozué Miguel dos Santos para cumprimento da pena de reclusão em regime fechado, em sistema prisional adequado à ordem sentencial, ou seja, na penitenciária mais deplorável que houvesse.

Se já estava cumprindo a pena numa penitenciária de passagem e nesta sofrendo as maiores agruras que um ser humano poderia suportar, daí em diante seu sofrimento se multiplicaria e sua resistência de ser humano talvez não suportasse mais sonhar com a liberdade. Ora, ficava tudo mais difícil se não tinha mais ninguém que ao menos fosse visitá-lo e desse qualquer tipo de esperança. Até aquela mocinha que havia se comprometido com a sua causa havia sumido, deixado de visitá-lo. Não sabia o que havia ocorrido com Carmen.

Chegou transportado feito bicho no meio da madrugada, sem saber nada como era o lugar nem o que lhe aconteceria dali em diante, cochilou em pé por uns instantes e quando abriu os olhos foi jogado numa cela imunda, em meio a mais de dez presidiários. Ali, onde não cabiam mais de três, tinha de ser dividida entre tantos, num tipo de socialização do absurdo, da malvadeza, da crueldade, do total desabonamento da dignidade humana.

E porque aquilo não era mundo, não era vida, mas era cumprimento da lei. Mas será que existiria lei para condenar ao sofrimento mais cruel, fragilizando o indivíduo até sua morte, se a legislação brasileira não permite a pena de morte? Mas a lei diz o que quer e os homens a cumpre como desejam e no sistema prisional, de modo específico, descumpre-se o mínimo benéfico para priorizar ao máximo o maléfico.

Com efeito, segundo a lei penal brasileira, considera-se regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média. Tal estabelecimento é a tão temida penitenciária. Do ponto de vista moral e pessoal, a prisão constitui-se no pior lugar em que o ser humano possa viver.

Segundo a lei, a penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão em regime fechado. Por definição, esta é o estabelecimento oficial de reclusão ou detenção, ao qual deverão ser recolhidos os indivíduos condenados pela Justiça, por terem cometido algum tipo de delito ou infração contra as leis do Estado. Ou ainda, numa visão otimista, é um presido especial onde são recolhidos os condenados às penas de reclusão e onde o Estado, por sua vez, os submete à ação através de leis punitivas, objetivando recuperá-los e reajustá-los para o retorno ao convívio social.

De qualquer sorte, a penitenciária destina-se aos condenados a pena terrificante, cruel, destruidora de todo o seu potencial humano. No aspecto da manutenção do indivíduo sem que haja possibilidade de fuga, a penitenciária se define como estabelecimento de segurança máxima. Neste tipo de prisão predomina a idéia de prevenção contra fuga, com edifícios de forte e sólida construção, rodeados de alto muro, intransponível e dotados de torre, com guardas fortemente armados, bem como refletores para prevenção de fuga à noite.

E eis o maior devaneio da lei que trata sobre a execução, pois afirma exatamente o que jamais foi observado no cumprimento da pena: cela individual que conterá: dormitório, aparelho sanitário e lavatório; salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; área mínina com metros quadrados definidos. Na verdade, apenas uma intencionalidade legal que nunca é colocada em prática diante do fato de que, com relação ao condenado, procura-se construir empecilhos e minimizar ou até impedir que algum benefício lhe seja garantido no cumprimento da pena.

O que se vê, então, senão a superlotação de presídios, a corrupção de agentes penitenciários, a tortura e maus-tratos contra os presos, como reflexo de um sistema prisional falido e inoperante? Ademais, e tome-se isto como verdade absoluta, praticamente nenhum presídio brasileiro exerce o papel de reeducar o preso, que é a sua finalidade maior expressa na legislação.

Ademais, as condições mínimas de sobrevivência não são respeitadas nos presídios, são celas com restos de comida, ratos e insetos convivendo com presos que chegam a passar até quatro meses sem ver a luz do sol. Nestas condições, não é de se estranhar a gravidade do estado de saúde dos presidiários, propiciando na população carcerária o retorno de doenças que se encontravam sob controle na sociedade.

Neste sentido, tem-se a proliferação da tuberculose como doença endêmica na maioria das penitenciárias. Doenças como a AIDS são sentenças de morte para os presidiários. Não raro a missão de socorro é utilizada como forma de punir o preso, que acaba morrendo como um rato qualquer que apenas é recolhido da imundície, do monturo, do leito vergonhoso do sistema prisional.

Não se poderia esquecer a continuidade de métodos medievais e escravistas de tortura. Por mais que as autoridades e demais responsáveis pelo sistema prisional sempre omitam, verdade é que ainda vigoram nas penitenciárias métodos de punição abjetos e afrontosos à dignidade humana.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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