NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 79

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 79

Rangel Alves da Costa*

O advogado Auto Valente, cheio de remorsos, ressentimentos e culpas, ainda não havia voltado completamente a si depois da morte de Carmen, seu grande amor. Se mantinha à força de um ódio incontido, de uma revolta gritante, de uma vontade imensa de levar ao conhecimento da imprensa toda aquela trama vergonhosa.

Se fizesse isso atingiria, a uma só vez, não só as pessoas importantes e poderosas envolvidas, mas também as instituições das quais faziam parte, ou seja, o judiciário e o legislativo. Mas nas pessoas desmascaradas é que residia o perigo. O que seria do quase desembargador se o seu nome, pouco antes de sua posse, saísse nas manchetes como corrupto, mercador de sentenças, envolvido em organização criminosa? Improvável se pensar em sua reação.

Com o deputado seria muito mais provável se imaginar como reagiria se o seu longo histórico de crimes, corrupções e safadezas de todos os tipos, chegasse ao conhecimento da sociedade. Por ser cínico demais, também se tornava muito mais perigoso; por ser medroso ao extremo, o temor se transformaria imediatamente em reação mortal. Mas o perigo maior residia na sua frieza, na sua força traiçoeira, na sua sede vingativa. O homem seria capaz de tudo em nome de sua honra, mesmo que tivesse a certeza que ela não valia nada, que tinha o mesmo valor do povo que, em troca de favores, dinheiro e negociatas, o elegia.

Mas havia ainda um aspecto que o Dr. Auto não havia pensado com a devida profundidade, que era em si mesmo, no seu futuro depois disso tudo. Já vivendo permeado daquela expressão popular dizendo que se ficar o bicho pega se correr o bicho come, a única certeza que tinha era de não ter mais saída nenhuma. Contudo, também sabia que sua vida, tanto pessoal como profissional, não teria mais sentido algum estando atrelado àquela organização criminosa comandada pelo deputado, a serviço dele, sempre fazendo o que ele desejasse.

Por pouco dinheiro diante dos perigos e riscos, enlameando o seu nome e embaçando o futuro, havia se deixado conduzir pela velha e perigosa raposa. Agora estava de mãos amarradas e pés atados, estava sem saída. E só via uma luz no fim desse imenso abismo, uma única forma de salvação, que era saber que o odiento parlamentar havia morrido. E entristecia mais ainda quando imaginava que poderia morrer bem antes do que aquele vaso ruim. Ora, vaso ruim não quebra tão facilmente, mas ele era uma vidraça demasiadamente frágil. E quantas pedras nas mãos já estavam naquele momento mirando sua inglória?

Mas matar o deputado seria perigoso demais; mas não matar o deputado seria também perigoso demais, pois sabia que mais cedo ou mais tarde sua vida acabaria com um simples gesto, uma ordem dele. Poderia envenená-lo, dar um tiro à queima-roupa, pagar a um pistoleiro para fazer o trabalho bem feito. Ou simplesmente se matar, terminar o que não havia tido coragem de fazer quando já estava com a arma na mão diante do espelho. E sua morte, seu suicídio, seria festivamente brindada, Dr. Auto, e como os urubus gostariam de saborear esse seu merecido destino.

Com tais pensamentos e outros, nem se dava conta de que logo mais teria de ir participar da posse do novo desembargador. Havia recebido o convite e de modo pessoal o aviso de que não poderia deixar de prestigiar o suntuoso evento de jeito nenhum. Mas ele iria mesmo, porém não para aclamar a vitória do magistrado nem para estar em meio à nata do poder estadual em todas as esferas, mas sim para olhar mais vez de perto para a cara daquele juiz e tentar entender com quantos desserviços à justiça, ao direito e à honra se forja um desembargador.

Marcada para o entardecer, eis que a partir das três horas da tarde os arredores do tribunal de justiça já estavam completamente tomados pelos veículos dos convidados que chegavam parecendo paramentados para uma coroação real. Os corredores palacianos tornavam-se pequenos para os desembargadores, magistrados, membros do parquet, deputados, secretários de estado, advogados, empresários, políticos, familiares, e até o governador e seus puxa-sacos.

O imenso auditório da justiça todo iluminado e florido, era realmente pequeno para o grande número de pessoas que foram saudar e reconhecer o merecimento do grande magistrado na função maior judicante do judiciário estadual. Ora, alçado a desembargador, parecia que o homem iria ser endeusado, receber a coroa dos deuses, o cetro dos infalíveis, as chaves do céu.

Contudo, acredite-se ou não, mas a grande maioria dos que estavam ali procuravam apenas disfarçar um respeito que o novo desembargador realmente não ostentava. Os próprios pares na casa, os magistrados que o conheciam de outros percursos, advogados, promotores e muitas outras pessoas sabiam do caráter imprestável daquela réstia de homem, do seu descalabro na vida judicante, do seu comportamento antiético, da sua conduta desonrosa de sempre, enquanto pessoa e juiz.

Por isso mesmo é que comentavam aos ouvidos, à boca pequena, sussurrando, quase silenciosamente, que seria empossado um verdadeiro bandido, um sórdido e corrompido, imparcial em todos os sentidos, comerciante de sentenças, sem qualquer virtude que o fizesse ser olhado com o mínimo respeito. E se comentou ainda que enquanto o calhorda recebia a investidura, pobres e inocentes indivíduos estavam àquela hora mofando nas penitenciárias por causa de sua insensatez.

Ao fazer a saudação ao novo desembargador, o presidente do tribunal, benzendo-se intimamente porque sabia que estaria ungindo um desonesto, logo cuidou de teatralizar, tornar possível uma realidade inexistente. Em seguida começou a tecer mil qualidades no grande homem que a partir daquele instante seria um grande marco na história daquele tribunal e mais tarde, quando as lides judicantes lhe mostrassem o cansaço, talvez lembrado como o homem que enxergou nos reais valores e ideais da justiça toda a sua razão de ser.

Em síntese, disse ainda que ali estava o magistrado, o julgador ideal citado por Calamandrei. Homem de sólida formação moral, inatacável na sua conduta, com uma vida inteiramente pautada nos valores da pátria, da família e da religião. Na verdade apenas um homem que fez do seu coração um código para julgar segundo o convencimento tomado de virtudes e de respeito ao próximo, procurando dar o direito de cada um sem afrontar o sentimento do outro. Apenas um homem que sempre procurou buscar na justiça o máximo ideal de servir ao próximo.

Aplausos e mais aplausos, mas também os cochichos dizendo que dava vontade de gargalhar, de gritar dizendo que prendam o bandido, enjaulem o corrupto de beca, jogue na cadeia esse indigno de ser até ladrão de galinha. E diziam ainda das deslavadas mentiras do orador, da coroação do porco nojento, da fedentina que seria aquele tribunal a partir daquela posse.

Contudo, algo muito estranho começou a acontecer quando o novo desembargador foi convidado a se pronunciar sobre tão importante investidura. Mais tarde, e talvez para sempre, ninguém acreditaria que aquilo pudesse ter acontecido. Mas aconteceu.

continua...

Poeta e cronista

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