NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 76

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 76

Rangel Alves da Costa*

Embora atormentado e física e moralmente esvaziado, Jozué era um dos poucos que continuava tendo alguma percepção sobre a realidade imposta, dolorosamente vivenciada. Por isso mesmo quando começou a ouvir boatos sobre o que tencionavam fazer com Paulo correu de lado a outro implorando que não fizessem tamanha perversidade com alguém que nem se reconhecia mais de tão enlouquecido que estava.

Tentou persuadir os iguais no infortúnio, fazia de tudo para mudar tão horrendo objetivo, mas a cada palavra que dava ouvia desdém como resposta. Ameaçou fazer chegar à direção aquele plano macabro e foi logo alertado que ao invés de um a morrer crucificado seriam dois, bastando que fizesse a besteira de abrir a boca ao menos para um daqueles agentes prisionais.

Depois da meia noite, por volta de uma hora, três ou quatro saíram no encalço de Paulo e foram encontrá-lo sorridente, traçando desenhos pelo ar, num canto afastado, perto de uns escombros. Sorria, parecia feliz com os seus devaneios psicóticos, e assim continua mesmo quando começaram a puxá-lo pelos cabelos e arrastá-lo por cima de bagaceiras e objetos cortantes espalhados pelo chão.

Triste e terrível cena, quem bem poderia recordar outra triste e terrível cena num tempo já muito distante. Mas como o martírio está sempre presente!

“Os soldados conduziram-no ao interior do pátio, isto é, ao pretório, onde convocaram toda a corte.

Vestiram Jesus de púrpura, teceram uma coroa de espinhos e a colocaram na sua cabeça.

E começaram a saudá-lo: Salve, rei dos judeus!

Davam-lhe na cabeça com uma vara, cuspiam nele e punham-se de joelhos como para homenageá-lo.

Depois de terem escarnecido dele, tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de novo as vestes e conduziram-no fora para o crucificar.

Passava por ali certo homem de Cirene, chamado Simão, que vinha do campo, pai de Alexandre e de Rufo, e obrigaram-no a que lhe levasse a cruz.

Conduziram Jesus ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer lugar do crânio.

Deram-lhe de beber vinho misturado com mirra, mas ele não o aceitou.

Depois de o terem crucificado, repartiram as suas vestes, tirando a sorte sobre elas, para ver o que tocaria a cada um.

Era a hora terceira quando o crucificaram.

A inscrição que motivava a sua condenação dizia: O rei dos judeus” (São Marcos, 15 16-26).

Por que fazer isso com o pobre Paulo, o doido, o insano, o enlouquecido pelas circunstâncias? Talvez a resposta estivesse em Isaías 53 2-9:

“Cresceu diante dele como um pobre rebento enraizado numa terra árida; não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos.

Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele.

Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado.

Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas.

Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, seguíamos cada qual nosso caminho; o Senhor fazia recair sobre ele o castigo das faltas de todos nós.

Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca.)

Por um iníquo julgamento foi arrebatado. Quem pensou em defender sua causa, quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo?

Foi-lhe dada sepultura ao lado de facínoras e ao morrer achava-se entre malfeitores, se bem que não haja cometido injustiça alguma, e em sua boca nunca tenha havido mentira”.

Por fim, como desfecho do martírio do inocente e agora anestesiado pela própria mente:

“Era quase à hora sexta e em toda a terra houve trevas até a hora nona.

Escureceu-se o sol e o véu do templo rasgou-se pelo meio.

Jesus deu então um grande brado e disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, dizendo isso, expirou” (São Lucas 23, 44-46).

Arrastado, chutado, ferido, achincalhado, Paulo foi levado, sempre sorridente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, até um poste de iluminação. Ao redor, cuidaram de trazer uma barra de ferro, e estendo-a horizontalmente sobre as costas, estenderam-lhe os baços, amarram-nos com cordas e depois se esforçaram o máximo que podiam para conduzi-lo até o alto do poste, onde amarram o corpo com outras cordas e o deixaram lá estendido de braços abertos, feito Cristo crucificado.

Com o corpo já naquela posição, um dos algozes subiu novamente e aplicou-lhe dois golpes na barriga. Neste momento Paulo bradou de dor, soltou um grito horrendo. Não disse, mas poderia ter encontrado forças para dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. E, dizendo isso, expirou. Coincidência?

Ao amanhecer apenas olhavam aquela terrível cena. Todo mundo sabia quem havia feito aquilo, mas ainda assim todos se perguntavam quem poderia ser o culpado por uma crueldade tamanha. Mas ninguém respondia. Todo mundo sabia, mas ninguém respondia.

Se perguntassem a Jozué encontrariam o silêncio e um grito nos olhos. Passou a noite chorando e assim continuava.

continua...

Poeta e cronista

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