NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 72
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 72
Rangel Alves da Costa*
Após a informação desaforada da assessora do magistrado, dizendo que mesmo o advogado se sentindo prejudicado porque o juiz estava com os autos nem adiantaria recorrer ao tribunal para reclamar, o inabalável Céspedes Escobar parece ter sido impulsionado e saiu voando de lá rumo à corregedoria. Raivoso, esbaforido, ferido na honra advocatícia.
Antes, contudo, pegou folhas em branco na pasta, redigiu rapidamente dois termos de apelação, afirmando estar peticionando tempestivamente, ou seja, dentro do prazo legal, garantindo que apresentava o apelo em razão do inconformismo com as sentenças condenatórias proferidas, requerendo em seguida a apresentação das razões recursais perante a superior instância, também dentro do prazo legal.
Com efeito, as partes possuem prazo definido de cinco dias para apelar no processo penal. Esse é o prazo para que as partes demonstrem o seu interesse na revisão da decisão prolatada em primeira instância pelo Tribunal ad quem. Entretanto, a parte possui ainda um prazo de oito dias para arrazoar o seu recurso. Em outras palavras, pode o interessado interpor o recurso em uma data, e só apresentar as razões de seu inconformismo oito dias depois.
Após a apresentação das petições no protocolo, saiu praticamente correndo em direção ao tribunal. Ao chegar se dirigiu imediatamente para a corregedoria. Nesta, praxes burocráticas pra lá e pra cá, preencha aqui, faça isso e aquilo, aguarde que as providências serão imediatamente tomadas. Um blá blá blá insuportável e ultrajante para um caso de tamanha seriedade. Ainda no local resolveu aguardar o desembargador-corregedor, quando foi prontamente informado que o mesmo só apareceria ali para despachar no dia seguinte.
Esperar um dia a mais e ainda assim ter de aguardar mais outro dia para que a ordem de retorno dos autos fosse concedida, seria tempo demais e de nada valeria a pena tanto esforço, pois o prazo já estaria esgotado. E se protocolasse os recursos um minuto além do termo final, após o lapso temporal, logo a própria vara criminal que havia dado causa ao atraso reconheceria de plano sua intempestividade. Quer dizer, não caberia mais recurso apelando contra as sentenças e estas transitariam em julgado. Daí o juiz apareceria com os autos para encaminhá-los para a vara de execução. Estava feito o trabalho, na mais perfeita estratégia de condenação a todo custo.
Imoral, ilegal, injusto, censurável, desonesto, covarde, vilania, tudo, mas era assim que tinha de funcionar. Ora, o circo condenatório havia sido armado de tal forma que nada poderia falhar, o palhaço não poderia chorar, o show tinha de continuar. Na concepção do magistrado corrupto, não seria agora, no instante que o seu trabalho de esforço condenatório já estava se encerrando que apareceria um advogado, fosse com a história causídica que tivesse, que ia impedir a completa felicidade dos seus comparsas naquela tramóia imunda.
Incansável, tenaz e persistente, o Dr. Céspedes deixou as instalações da corregedoria e se emprenhou nos corredores do tribunal, subindo escadas, batendo portas, até ser informado que o egrégio julgador estava em plenário. Não quis entrar na sala de julgamentos e resolveu esperar ali por fora mesmo, andando de um lado a outro. Contudo, achou melhor esperá-lo nas proximidades do seu gabinete e para lá se dirigiu. Em algum momento o homem apareceria, disso tinha certeza.
Mais de uma hora depois e o eminente corregedor desponta ao lado de um assessor. Dr. Céspedes já o conhecia de outras andanças, de outros fóruns judicantes, e foi ao seu encontro, cumprimentou-o com a cordialidade de praxe e no momento seguinte já foi dizendo que tinha algo muito importante a relatar e pedir as devidas providências. Foi convidado a entrar no gabinete, expôs o fato e os pormenores, disse da situação vexatória que havia passado, e ouviu o que não quis acreditar:
“Apenas ouvi o seu relato, porém já sabia que viria até aqui e também já conhecia o fato. Talvez a assessora do ilustre magistrado, este nobre e honrado juiz que brevemente estará aqui nos abrilhantando com seu grande saber jurídico, ilibada reputação, moral extreme e dignidade absoluta, o tenha informado de sua passagem pela vara criminal e sua preocupação com os autos. Pelo que fui informado, o ilustre advogado acha que o futuro desembargador está retendo indevidamente os dois processos, não é isso mesmo? Pois o meu colega telefonou-me há pouco instante dando a versão dele. Permisso venia, não desacreditando na palavra do ilustre causídico, mas tenho de dar razão ao colega futuro desembargador. Eis que ele só requisitou a entrega dos processos, levando-os até sua residência para uma análise antes de dá-los seguimento para a vara de execução porque o prazo para recurso venceu-se na sexta-feira passada. Diante desta informação tem-se que não haveria nem mais possibilidade de interpor os recursos cabíveis, pois houve preclusão temporal, perda de prazo para apelar. Como bem sabe o nobre causídico, o prazo recursal é peremptório, insuscetível de dilação. Portanto, o magistrado retém para análise apenas autos que não terão mais serventia nenhuma para o nobre advogado. Não mais nesse momento processual, a não ser em fase de execução, cujas providências já estão sendo tomadas para o encaminhamento e o cumprimento das penas em definitivo”.
Dr. Céspedes só faltava explodir de raiva, tomado por uma cólera tamanha que era preciso ser muito forte para não se exaltar demais perante tão alta patente judiciária. Mas tinha de desabafar e disse:
“Mas isso é um absurdo, pois milito na esfera penal há mais de trinta anos e conheço muito bem o que é prazo recursal e sei como se conta tal prazo, e tenho certeza que ainda me restam dois dias para apelar. Ora, meritíssimo, não estaria aqui se tivesse dúvida sobre o meu direito...”.
“Calma, Dr. Céspedes, calma. Será muito fácil verificar tal fato e dirimir qualquer dúvida”. Chamou um assessor e pediu para que providenciasse a movimentação processual acerca daqueles processos e as datas da publicação das sentenças no órgão oficial da justiça. Não demorou muito e o desembargador já estava com a documentação em mãos. Deu uma rápida lida por baixo dos óculos, deu um sorriso íntimo e também exterior como a demonstrar que estava com a razão, não só ele como o futuro colega, e em seguida sintetizou ao advogado:
“Eis aqui. Se não tivesse havido republicação da sentença por erro o ilustre advogado estaria com toda razão. Contudo, tendo havido erro e reparado a tempo, a publicação retroagiu e o prazo para a interposição do recurso não se deu no qüinqüídio após a errônea publicação, mas antes. Com a republicação, o prazo se venceu precisamente na sexta-feira. E hoje já estamos na segunda-feira. Portanto, intempestivo será todo o recurso que tentar manejar”.
Dr. Auto não acreditava, sinceramente, no que ouvia. Lembrava de Carmen e das maracutaias que ela havia relatado. Quanta razão tinha a moça, quanto covarde era essa justiça forjada e manipulada pelo homem de má índole, pelo julgador corrompido e corruptor. Não tinha nem mais o que argumentar, apenas se despediu como pôde e foi morrer bem em frente ao tribunal.
Assim que saiu do prédio, atravessou a rua, não deu mais do que cinco passos e caiu morto ao chão. Ataque fulminante.
continua...
Poeta e cronista
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