NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 71
NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 71
Rangel Alves da Costa*
Alfredinho, o safado do velho agiota, até que tinha razão. Auto Valente, até por ser o mais fraco entre os envolvidos, realmente representaria um grande perigo se, por fraqueza do espírito ou tentativa de se livrar dos remorsos tantos, desse a língua nos dentes, lavasse suas mãos levando aqueles podres ao conhecimento da imprensa.
Mas querer eliminá-lo também já seria um exagero estratégico. Ao menos foi isso que pensou o parlamentar ao procurar satisfazer a curiosidade do agiota profissional:
“Deixemos o homem vivo, deixemos Auto Valente ainda viver. Fraco como é, atrelado como está às minhas mãos, me será ainda de grande utilidade. Tenho muitos planos pra ele, muitas coisas pra ele resolver. Perigosamente quanto vivemos, não podemos deixar de ter um advogado sempre ao lado, principalmente pra errar por nós. Mas se a coisa apertar não pensarei duas vezes, pois é melhor sacrificar o peru para a festa não perder o sabor. E quanto a você, cale essa matraca nem continue me ligando demais. Brevemente repassarei outro número para contato, e também cuide de se livrar desse aí”.
Em seguida Serapião Procópio tentou falar com o advogado, mas todas as vezes que insistia o telefone chamava e ninguém atendia do outro lado. Como era final de semana, Auto Valente resolveu passar o dia numa vila de pescadores nos arredores da capital, distando uns vinte quilômetros do centro. Precisava desses momentos de solidão, mesmo sabendo que onde fosse a tristeza, a dor e o senso de culpa lhe fariam companhia. Tão cedo não afastaria de si tanto sentimento ruim, sabia muito bem disso.
Se estivesse com outro olhar senão o da desimportância para a vida e para o mundo, entenderia muito bem o valor daquela vida pacífica dos pescadores, daqueles coqueirais balançando ao sabor do vento, da natureza ainda pujante, das águas cristalinas e acolhedoras. Cada passo e cada pequena coisa eram de uma grande e singela exuberância. Mas para onde olhava via o rosto de Carmen, ela passando, ela andado, como se sua mente transformasse tudo naquela mulher que havia ajudado a perder a vida.
Ela, a bela Carmen, fora velada noite adentro na sede da principal fazenda de sua família e logo ao amanhecer o velho empregado já caminhava em direção à centenária baraúna, árvore de uma beleza inigualável, imensa e forte, para limpar o terreno ao redor e, debaixo do seu sombreado, bem próximo ao tronco, abrir a cova onde ela seria enterrada.
Era um desejo do velho pai, um querer que não podia ser contrariado, principalmente porque deveria ter motivos de sobra para desejar ter a filha ali tão próxima da família, principalmente dele, que parecia ser a própria terra, as próprias pedras e troncos, unidos naquela estrutura física agora tão combalida. Um velho do mundo, da luta, da conquista e do desprazer, tão vitorioso quanto perdedor naquele instante. Nunca mais seria o mesmo, já se apossava de tal certeza. E não poderia ser diferente. O que fazer do roseiral sem sua mais bela flor?
Talvez num olhar, numa passada, numa pisada, num curto caminhar, deixasse a vida como estava, com suas dores e sofrimentos, e fosse até ali para conversar com sua menina. Mas somente ele sabia o porquê de fazer da velha baraúna o último vestígio de moradia da filha sobre a terra. Mais tarde, se pudesse alcançar futuro, não ergueria qualquer monumento ali, qualquer coisa suntuosa como homenagem póstuma. Bastariam as flores do campo, as plantas rasteiras, os passarinhos voejando ao redor, o vento do entardecer querendo apagar as velas invisíveis rodeando a saudade. Bastava isso. Na simplicidade, a verdade de tão grande amor.
Antes do final daquela manhã de domingo lhe foi dado o último adeus. O velho padre, chorando, quase não podia dizer as palavras santas. Uma chuva fininha já molhava todos aqueles que acompanharam a rápida caminhada entre a casa e a baraúna mais adiante. Mas bastou que a pá jogasse a última porção de terra para as chuvas começarem a cair com força, dando um aspecto tempestuoso à natureza e tudo ao redor, trazendo uma ventania inesperada, espalhando folhagens e pedaços de gravetos pelo ar. Era quase meio dia, mas parecia já noite feita, cheia, enegrecida, feia, triste.
Dr. Céspedes Escobar esteve no velório quase como um desconhecido, apresentando-se apenas com seu ex-professor quando tinha de satisfazer a curiosidade de alguém. Chorou silenciosamente, sofreu dolorosamente, não queria acreditar no que via. Deixou o local já debaixo de tempestade, tendo ao lado um motorista, pois não suportaria guiar por aquelas estradas com a cabeça envolta em tantos problemas.
De lá até a entrada da cidade vinha pensando como seria difícil, e até impossível, homenagear a amiga através da defesa dos dois inocentes. Certamente que ela ficaria chocada com mais esse absurdo, fato que ele enquanto velho militante na seara jurídica nunca tinha visto coisa parecida, tão vergonhosa, tão vergonhosamente nojenta. Mas a verdade é que quando procurou a vara criminal para ter acesso aos processos foi informado que os autos não estavam ali, e sim com o juiz.
Argumentou que o prazo recursal já estava esvaindo e que teria de ter aqueles processos em mãos com urgência. A servidora do judiciário afirmou que infelizmente não poderia fazer nada, mas se ele quisesse poderia falar com a assessora do magistrado. Logicamente que ele achou uma providência louvável e que poderia trazer bons frutos. Contudo, assim que foi recebido pela moça sentiu vontade de chutar os móveis do gabinete, dizer mil palavrões, fazer a festa da indignação.
Eis que a servidora o informou, numa sinceridade permeada pelo cinismo, que os autos estavam realmente com o magistrado e não sabia se tão cedo ele os traria de volta. Mas se ele quisesse entrasse com uma representação junto à corregedoria. Em seguida alertou que isso também poderia não surtir efeito algum, pois ninguém no tribunal iria querer criar problemas para o futuro desembargador.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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