NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 66

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 66

Rangel Alves da Costa*

Uma caixa de charutos e chapeu novo para o pai, um retrato da mãe que havia mandar pintar numa tela à óleo, terços, bíblias, perfumes, enfeites, brinquedos, modismos tecnológicos, roupas artesanais, enfim um monte de presentes para os seus e para os amigos. E eram muitos, por isso tinha o máximo cuidado de não esquecer aquelas pessoas de maior proximidade e admiração. Sua intenção seria agradar, mas enfim.

Não se esquecia da Velha Damécia, uma senhora já muito idosa, de herança e sangue escravo, moradora de favor em uma das casinhas da fazenda principal do seu pai, onde a família praticamente vivia. Segundo sua mãe, essa preta retinta, de cabelo pixaim branquinho e andar já encurvado, sempre acompanhada de uma bengala de catingueira, foi quem lhe cuidou quando criancinha.

Não somente por ter sido uma babá com orgulho de mãe e briguenta até com a própria mãe se discordasse de alguma coisa, como era costumeiro fazer, mas também porque foi quem praticamente ensinou tudo a menina nos seus primeiros anos. Dava banho, dizia a hora exata que tinha de ser amamentada, acalentava pra dormir, cantava belíssimas cantigas de ninar, trazia a mamadeira, mais tarde a papinha e o mingau, ensinou a dar os primeiros passos, iniciou a pequenina no conhecimento de uma língua estranha, língua africana, do negro escravo, língua da alegria e da tristeza, da festança e do lamento.

Pensou em comprar umas imagens bonitas de santos, porém sabia que ela tinha outras devoções e outros santos, outras crenças e uma religiosidade muito própria. Por isso mesmo comprou metros e mais metros de tecidos claros, principalmente brancos, que era sua cor preferida. Lá era só mandar alguém tomar as medidas e deixar a boa e velha senhora enfeitada e sorridente. Talvez ela voltasse a sorrir, pois sua mãe havia lhe dito que a mulher vivia numa tristeza infinita e que só abria a boca para o sorriso bonito na dentadura alvinha quando falava em Lucinha ou a própria chegava por lá.

Não sabia, contudo, que a velha senhora havia morrido na noite anterior, depois de um sonho ruim suportado, cruel e medonho pesadelo, quando saiu de sua tapera cerca de duas horas da madrugada, suada, desesperada, descalça, numa aflição de não acabar mais, quase correndo sem poder em direção à casa grande, sede da fazenda, para avisar ainda naquele momento sobre o triste presságio que tivera.

Estava segurando a menina nos braços e cantando uma velha canção de dor africana, quando veio um bicho feio, com asas e com sangue nos dentes afiados, com uma venda nos olhos e uma caneta enorme na mão, e com a outra mão tirou-lhe a criancinha e fugiu às gargalhadas, sumindo sem deixar nem pistas pra qual lado tinha ido. Acordou assustada e com a certeza que aquela menina que estava junto ao seu peito era Lucinha, sua Lucinha e de mais ninguém.

Carmen Lúcia era sua Lucinha. E aquele sonho ruim não queria dizer outra coisa senão que ela corria grande perigo. A morte a rondava, o inimigo agia rapidamente contra ela para tomá-la da vida. Ora, a vida era seus braços, os braços negros de sangue distante, deles o bicho feio roubaram-lhe a jovem seiva. Carmen Lúcia, sua Lucinha, corria perigo. Não podia ser outra coisa. Abriu a porta quase sem enxergar nada e saiu de casa feito uma enlouquecida, tateando a escuridão e tropeçando ali e acolá. Até que o coração não suportou e caiu morta.

Carmen não sabia disso, mas havia comprado o seu presente. Depois de arrumar tudo numa mala somente com as lembrancinhas, já muito cansada pela série de ocorrências daquele dia, rezou ajoelhada perante o seu oratório, renovou a vela de sete dias que já tinha chegado ao fim, e em seguida colocou Claude Debussy bem baixinho. Deitou com um livro à mão, aberto numa página, porém sem tempo de ler um poema sequer.

Adormeceu e logo lhe veio um pesadelo que a fez suar. Sem acordar pelo corpo cansado, viajou no sonho ruim, guiada por um anjo que chorava e colocava diante de seus olhos um poema escrito em sua homenagem. Não sabia, pois nem tinha lido qualquer poesia daquele livro ali ao lado, tombado na sua mão, mas a poesia colocada diante dos seus olhos era a mesma daquela página não lida. Na folha, o poema de Álvares de Azevedo “Soneto da Morte”, dizia:

Já da morte o palor me cobre o rosto,

Nos lábios meus o alento desfalece,

Surda agonia o coração fenece,

E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto

Tento o sono reter!… já esmorece

O corpo exausto que o repouso esquece…

Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,

Fazem que insano do viver me prive

E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!

Volve ao amante os olhos por piedade,

Olhos por quem viveu quem já não vive!

Acordou assustada, mas já era o primeiro alvorecer. Nem se lembrou de olhar o que estava escrito a partir naquela página. Correu para o oratório e se fez mais suplicante do que jamais fora em toda a vida. Implorou para que nada daquele sonho ruim fosse semeado pelo seu caminho. Mas seu destino já estava escrito antecipadamente, e pela mão dos homens.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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