NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 53

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 53

Rangel Alves da Costa*

Aninha, filha da falecida Glorita, pediu desculpas a Carmen porque não a acompanharia na visita que faria ao diretor do estabelecimento penitenciário para tratar sobre a doença de Paulo. Alegou que não se sentia bem ali, era muito doloroso estar perto do irmão naquela situação e não poder fazer nada, além do que nem tinha o que dizer sobre aquele assunto tão importante.

Carmen entendeu muito bem as desculpas da mocinha e até achava melhor mesmo ir sozinha e conversar de forma o mais claramente possível com a autoridade prisional. Tinha certeza que o mesmo já sabia do problema do rapaz, pois no dia anterior já havia insinuado algo neste sentido. Verdade é que tinha até obrigação de saber sobre aspectos referentes a doenças e saúde dos presidiários.

Chegou depois das dez horas da manhã, se identificou, disse sobre o que se tratava aquela visita e ficou aguardando ser recebida. Não tinha dúvidas de que iria ser atendida porque já havia telefonado mais cedo e conversado com ele. Não haveria nenhum problema, informou. E disse ainda que era até bom que ela fosse até ali, vez que poderia ajudar a encontrar a melhor solução.

Não demorou muito e foi conduzida até a sala do diretor. Recebida com cortesia, agradeceu a oportunidade de estar ali e foi logo direto ao assunto, relatando o ocorrido durante a visita e afirmando não ter dúvidas de que aqueles sintomas era de quem estava com algum problema mental. Contudo, o que ouviu a seguir deixou-a verdadeiramente perplexa:

“Infelizmente, Dona Carmen, são muitos aqui na mesma situação. Quando não são problemas mentais são outras doenças que vão surgindo e se alastrando fazendo uma verdadeira e tenebrosa festa. É duro dizer, mas muito morrem do que os próprios presidiários chamam “febre do pântano”. E antes que me pergunte o que significa isso vou logo explicar. Significa tudo, todo tipo de doença que existe por aqui, e muitas delas agindo conjuntamente por dentro de uma só pessoa. E nessa junção de doenças estão as incuráveis gripes, bronquites, tuberculose, febre constante, dor nos ossos e nas juntas, ânsia constante de vômitos, vermelhidão pelo corpo, mal-estar contínuo, o aparecimento de bolhas ardentes que estouram e formam feridas, hanseníase, além de outras doenças típicas do sistema prisional. Além disso, com a fraqueza física e mental que a “febre do pântano” vai causando no indivíduo, aos poucos ele vai fraquejando também a mente e chega a um estágio que não tem mais jeito...”.

“Mas não é o caso de Paulo. Felizmente ainda não é o caso dele, pois fora o visível enfraquecimento físico, a desnutrição e magreza, o que realmente preocupa é o seu quadro mental. Este sim já apresentando um estágio preocupante. Será preciso tratamento urgente e o senhor diretor terá que tomar providências sobre isso...”. Mas Carmen foi prontamente interrompida:

“Quais providências Dona Carmen, quais providências pelo amor de Deus? O que está ao meu alcance eu faço, mas se não está também não posso fazer milagre. Sei muito bem o que a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal dizem sobre assistência à saúde do preso. A Constituição, num dos incisos do artigo 5º prevê que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. A saúde também é alçada como direito fundamental do ser humano e se estende também ao preso, seja provisório ou definitivo. Por mais que nem sempre vejam assim, fato é que continuam sendo seres humanos. Contudo, não garante assistência ao que está em liberdade, imagine se vai ter a devida preocupação com quem está preso. E sabemos que todos estes que estão aqui estão sob a custódia do Estado. Este, em última instância, é quem deve zelar pela saúde física e mental do preso. O problema, e é duro dizer isso e por isso vou dizer baixinho, é que o próprio Estado não garante nem a aplicabilidade nem a execução da lei. O Estado é omisso, inoperante, falido com relação a isso. Já a lei de execução diz em seus artigos 12 e 14 que o preso ou internado, terá assistência material, em se tratando de higiene, a instalações higiênicas e acesso a atendimento medico, farmacêutico e odontológico. A lei inclusive é bem clara ao afirmar que a assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico, e que quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. Aí é que reside o problema maior, e cai bem em minhas mãos para resolver. Como já foi dito, se o Estado não garante a execução da lei, apenas joga esse povo pra cá e depois não dá a mínima, não coloca um centro médico aqui, um posto de emergência ou coisa parecida, então é que a coisa fica mais difícil ainda. Aqui tem enfermaria sim, mas se quiser posso mostrar a fartura de produtos básicos que existe lá. Só tem duas macas, um resto de algodão e creio que um pouco de álcool. Fica lá um enfermeiro fazendo nada porque não tem o que fazer e nem pode fazer nada mesmo. Se a pessoa passar mal e tiver de tomar um remédio urgente vai morrer porque ali na farmácia não tem absolutamente nada. Não tem um remédio pra dor de cabeça, pra gripe, pra dor de barriga, nada. Mais uma vez vou falar baixinho pra que as paredes não ouçam, mas chegam aqui pra fazer vistoria o desembargador-corregedor do sistema prisional e o juiz de execução e andam de cima a baixo, percorrem a enfermaria, abrem gavetas e prateleiras, ficam sempre indignados com a situação, mandam fazer anotações e prontamente dizem que vão mandar urgentemente providenciar tudo. E sabe quando as providências são tomadas, Dona Carmen? Nunca. Para se ter uma ideia desse descaso, acerca de um mês enviei ofício relatando a situação e pedindo providências, mas até a presente data nem resposta nem material, remédio, reforma, contratação de pessoal especializado, nada. Então, pergunto de novo: o que eu posso fazer se sou empregado do Estado e o meu patrão não me deixa fazer nada?”.

Era de se estranhar tanta lucidez e responsabilidade daquele diretor de penitenciária, demonstrando realmente que tinha compromisso com a função exercida, e se não fazia a contento o seu mister com relação a determinados aspectos, era precisamente por causa dos motivos então expostos. Por isso mesmo Carmen estava gostando da sinceridade e do destemor em apontar tantos erros e absurdos. Pediu a palavra e falou:

“Tem plena razão, senhor diretor, toda razão. O problema é que diante de certas situações não podemos apenas estar colocando a culpa na omissão dos outros se podemos fazer alguma coisa. Na minha opinião, já que evidentemente o problema de Paulo não pode ser resolvido aqui, então proponho que ele seja autorizado a fazer tratamento particular ou através de equipe médica indicada pelo juiz de execução. Creio que o senhor poderia muito bem enviar um ofício relatando a situação do rapaz, explicando as dificuldades no tratamento e requerendo tratamento externo, seja particular ou por especialista indicado pelo juiz. Quanto ao custeio do tratamento particular nem se preocupe com isso...”.

Diante da proposta, o diretor apenas falou:

“Não seria difícil fazer isso, pois tenho interesse em ajudar e também me preocupo com a sanidade do rapaz que já passa por tantos problemas. Contudo, esse pedido, em atendimento a uma norma existente, deverá ser feito pelo advogado de Paulo diretamente ao juiz de execução, se o processo já estiver em fase de execução, ou ao juiz de primeiro grau, dependendo do estado do processo e ainda não foi expedida a guia de execução...”.

Então, ainda no meio das palavras do outro, Carmen lembrou raivosa do canalha do advogado. Procurá-lo para pedir isso seria a última coisa que faria na vida. Teria que buscar outros meios.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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