NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 51

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 51

Rangel Alves da Costa*

Jozué e Paulo estavam reclusos na mesma penitenciária de passagem. Não se conheciam, jamais haviam mantido contato entre si, ainda que os dois com uma história muita próxima e parecida. Jogados ali inocentemente, condenados à pena máxima pelos crimes que lhes foram imputados, esperando somente o trânsito em julgado da sentença e o juízo de execução penal mandar transferi-los para outra penitenciária e assim cumprirem definitivamente a pena. Isto na hipótese de não haver nenhum recurso ou este ser eivado de insucesso. Porém, não haveria cumprimento de pena pior do que aquilo que já estavam experimentando na pele, no corpo, na mente, na vida.

Regime fechado, máxima penalização para os dois perigosos bandidos. Aos olhos vesgos daquela justiça capenga e marcada pela desonra, talvez fossem mesmo os mais perigosos bandidos do mundo. É dessa forma que fazem quando, traindo-se e traindo a judicatura por três moedas, o mister ministerial por mais três, querem acabar, e efetivamente acabam, com a vida de inocentes.

Seria o início do fim, se poderia dizer, se já não estivessem pagando além do suportado por pessoas que tinham consciência de serem inocentes. Justiça, só mesmo quem te credita justiça nos que agem em teu nome desconhece a sua fragilidade, o seu outro lado, a sua feição de injustiça, ainda que feita sob a égide do respeito que carrega! Tira a venda dos teus olhos e procura enxergar com exatidão, sob pena de trair-se pela desculpa da míope imoralidade!

"Não é a injustiça em si mesmo que nos fere, é o sermos vítimas dela", já disse

Pierre Nicole; "A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade [...] promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas, já reconheceu Rui Barbosa; “Haverá flagelo mais terrível do que a injustiça de armas na mão?”, eis o pensamento de Aristóteles.

Com efeito, há que se dizer, a injustiça perpetrada e praticada contra os dois era tipicamente a injustiça cometida por covardes, por corruptos, por pessoas que se arvoraram no direito de praticá-la em nome da própria justiça. Ora, injustiça praticada com armas na mão, pois percorrendo o caminho inverso do justo com o mesmo passo que a função judicante deve buscar a justiça.

Em tais condições e aspectos é que os dois estavam na mesma situação, mesmo que não conhecessem tal fato. Muitas vezes o destino prefere que a dor não se alastre pelo reconhecimento da mesma dor no outro. Estavam no mesmo barco furado e vítimas da mesma tempestade, como se diz popularmente. Enganados pelo mesmo advogado, denunciados absurdamente pelo mesmo promotor, sentenciados covardemente pelo mesmo juiz, estraçalhados sob o poder corruptor do parlamentar, do outro juiz e de empresários.

Mas também os ligava o fato de terem suas mães, tanto Dona Leontina como Dona Glorita, mortas precisamente em decorrência daquela injusta condenação. Desde o momento da prisão, as duas também se viram condenadas ao sofrimento. A mãe de Jozué havia morrido olhando pra cara safada do advogado fazendo a leitura da sentença condenatória. A genitora de Paulo morreu enquanto estava no encalço do mentiroso do causídico, fugindo dela a todo custo por não ter mais coragem de dizer a verdade.

E não somente tais aspectos, pois naquele momento o que os relacionava mais ainda era a presença de Carmen perante os dois, ainda que não soubessem, agora fazendo verdadeiramente as vezes de mãe e de amiga. Não sabiam, mas a futura advogada conhecia de perto os seus problemas e procurava ajudá-los ao mesmo tempo. Como havia feito anteriormente com Jozué, havia estado ali também para visitar Paulo. Como havia se comprometido com, o mesmo faria com o outro.

Com relação ao filho da finada Leontina, já estava providenciando um novo defensor para tomar as medidas processuais cabíveis antes que a sentença transitasse em julgado. Entretanto, com relação ao filho da falecida Glorita a situação era bastante diferente, muito mais complicada, pois precisava, ao mesmo tempo, providenciar meios para tratar daquela crise comportamental, evidenciando ser um problema mental, e também jurídico, pois na mesma situação que o outro.

Jozué tinha avistado Paulo muitas vezes, contudo nunca procurou se aproximar. Conhecia pelo jeito do outro se estava disposto a ter a presença de alguém ao lado ou não. E não tinha dúvidas que aquele rapaz realmente não gostava de ninguém puxando conversa. Só vivia quieto demais, entristecido demais, jogado pelos cantos, num silêncio sepulcral e com o olhar mirando sóis e luas se ali houvesse.

Contudo, de uns tempos pra cá Jozué percebia algumas mudanças no companheiro de infortúnio. Não podia deixar de observar o comportamento doentio apresentado pelo rapaz. Mesmo que a maioria dos presidiários conversasse sozinha, pois era costumeiro vê-los discutindo consigo mesmo, sorrindo talvez com a própria sorte, interagindo com o seu outro eu em diversas situações, o que aquele fazia era realmente de se estranhar.

Eis que o rapaz discursava, gritava, gesticulava e fazia um monte de coisas, porém sem qualquer som, qualquer grunhido, numa mudez que causava sofrimento em quem observava sem entender nada. Mas não queria que ninguém chegasse perto, que falasse com ele, pois depois dos sermões consigo mesmo parece que esquecia a existência da realidade. Fechava-se na sua solidão percebida e assim permanecia horas e horas.

Jozué estava com aquela pequena bíblia presenteada pelo agente prisional transferido. Tendo avistado Paulo mais uma vez jogado num canto, pensou em ir até lá ler alguma coisa, um salmo, uma passagem do Eclesiastes, a oração que o Senhor ensinou aos homens no Evangelho de Mateus, qualquer coisa. Até se encaminhou naquela direção, mas vendo que os olhos estranhos do rapaz haviam se voltado raivosamente para ele, então resolveu dar outro curso ao caminho.

Procurou um lugar menos sujo e com menos presença de ratos e baratas e também sentou ao chão com seu livro sagrado na mão, já marcado no Salmo 11:

“No Senhor confio; como dizeis à minha alma: Fugi para a vossa montanha como pássaro?

Pois eis que os ímpios armam o arco, põem as flechas na corda, para com elas atirarem, às escuras, aos retos de coração.

Se forem destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?

O Senhor está no seu santo templo, o trono do Senhor está nos céus; os seus olhos estão atentos, e as suas pálpebras provam os filhos dos homens.

O Senhor prova o justo; porém ao ímpio e ao que ama a violência odeia a sua alma.

Sobre os ímpios fará chover laços, fogo, enxofre e vento tempestuoso; isto será a porção do seu copo.

Porque o Senhor é justo, e ama a justiça; o seu rosto olha para os retos”.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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