NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 50

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 50

Rangel Alves da Costa*

Ainda no carro retornando ao Quase Paraíso, a irmã de Paulo lembrou assustada que não haviam feito o que as tinha levado a fazer aquela visita. Quer dizer, o principal, que era falar sobre a morte da mãe, não havia sido feito. Carmen tranquilizou-a dizendo:

“Mas minha filha, você acha que diante daquele quadro deprimente que se encontra o seu irmão, com algum sério problema mental que precisa ser urgentemente cuidado, aquele seria o momento de falar alguma coisa sobre isso? Em primeiro lugar a gente nem sabe como ele reagiria, pois pessoas com tais problemas entendem muito bem algumas situações. Em segundo lugar, acho que devemos esperar o momento certo para lhe dar a notícia. Não sei, mas diante daquele aspecto tão entristecido e largado, como se a vida não tivesse mais nenhum significado, acho que o colocá-lo consciente de outra dura realidade seria ainda mais prejudicial. Mas espero que ele se recupere logo, e isso só será conseguido com tratamento. Por isso mesmo que amanhã voltarei até o local para falar com o diretor sobre o estado dele. De uma forma ou de outra, seja como for, ele precisará ser tratado. Sei que pra eles tanto faz, mas tem um artigo na Constituição Federal dizendo que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. E diz mais, afirmando, por exemplo, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Contudo, tais aspectos estão mais para as boas intenções da Constituição, tentando resguardar as normas de direitos humanos voltadas para os presidiários. No Código Penal também há outra deslavada mentira, pois contém um artigo dizendo que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Mas as leis não param por aí não, e são muitas, principalmente uma chamada de Lei de Execução Penal, também conhecida como “bonitinha, mas ordinária”. Na prática, minha filha, tudo é diferente, uma aberração, um total desrespeito...”.

“E por que eles fazem isso, Dona Carmen?”, interrompeu a mocinha para perguntar. E Carmen procurou responder sem difíceis explanações:

“Ora, infelizmente isso acontece porque ao condenar a justiça retira logo do condenado sua feição humana. Seja inocente ou não, uma vez condenado perde seu caráter de pessoa, de ser humano, de indivíduo portador de direitos e que merece respeito. Depois da condenação o indivíduo perde o nome, se torna um sentenciado, apenado, preso, presidiário ou coisa degradantemente parecida. Dificilmente se diz ali vai Sicrano ou Beltrano, mas sim que ali vai um ex-presidiário, aquele que fez isso ou aquilo. E ainda dá sorte quando é ex-presidiário, pois dificilmente se consegue sair de lá como gente. De modo geral, para a sociedade é um verme, um safado, um ladrão, um assassino, uma coisa ruim que não merece mais ser lembrado como gente. E não muda nada quando saem de lá porque foi reconhecida sua inocência ou cumpriu sua pena. Saiu daqueles portões continuará, aos olhos de todos, sendo bandido do mesmo jeito. É a velha história do uma vez bandido sempre bandido. E nas ruas, pensando que estão em liberdade, aí é que se verão noutra prisão a céu aberto, podendo caminhar e ir para onde quiser, mas sem conseguir jamais sobreviver com dignidade. Aqui fora as portas se fecham, as famílias dificilmente acolhem como deveriam, os amigos desaparecem totalmente, todos olham com asco e nojo, medo e distanciamento, não há mais chance de emprego, de trabalho, nada. Infelizmente é essa a realidade...”.

Demonstrando bastante interesse, a mocinha perguntou ainda à amiga: “E por que a senhora falou que existe uma lei que chamam de “bonitinha, mas ordinária?”.

“Parece que você gostou da brincadeira que fazem com a Lei de Execução Penal, que é a lei exclusivamente destinada a cuidar dos direitos e deveres dos presos durante a execução da pena. Conforme pregam alguns, a lei de execução visa dar assistência ao preso e ao internado e tem por objetivo prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade; já outros preferem chamá-la de “bonitinha, mas ordinária”, e isto porque é toda bem feitinha, bem acabada, feita com as melhores das intenções, definindo tudo certinho, tanto direitos como deveres, mas quando a mesma é colocada em confronto com a realidade carcerária logo vê-se que quase não tem nenhuma valia, é desrespeitada na sua essência, jogada no lixo das conveniências e sem utilidade alguma na maioria dos casos. E isto porque insistem, no sistema prisional perverso como é o do Brasil, em sempre se fazer tudo contrariamente à lei, segundo os desejos dos carrascos que guardam os presídios. Daí que é bonitinha, mas ordinária. Bonitinha porque se aplicada corretamente o sistema prisional brasileiro seria totalmente outro, os presos não iriam apenas mofar e sofrer na cadeia, se marginalizarem ainda mais, tornarem-se uns vagabundos imprestáveis, uns animais que aprendem a viver selvagemente dentro daquele mundo absurdo e desumano. A lei fala em reeducação, ressocialização, educação, assistência jurídica, moral, religiosa, à saúde, preparação para o reingresso no convívio social, mas o que se tem na realidade? Muito pouco disso e assim mesmo naquelas penintenciárias que logo são consideradas pela mídia como modelo. As outras são todas modelo, mas modelo de degeneração e desrespeito aos princípios e aos direitos humanos, modelo de sofrimento e aflição, de punição muito além da pena do condenado, de tratamento desumanitário e covarde...”.

“E o que de bom possui essa lei que nunca é colocado em prática pelos responsáveis pelo sistema prisional?”, e a mocinha indagou de forma inteligente. Carmen gostou da pergunta e se fez valer do seu conhecimento jurídico para responder:

“Olha, minha filha, a Lei de Execução Penal impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios, que são aqueles ainda não sentenciados e diz muito mais coisas. Nela está contido, por exemplo, que o preso tem direito à alimentação e vestimenta fornecidos pelo Estado, a um ambiente de cumprimento da pena arejado e higiênico, à visita da família e amigos, de escrever e receber cartas, de ser chamado pelo nome, sem nenhuma discriminação, ao trabalho remunerado em, no mínimo, 3/4 do salário mínimo, à assistência médica, social, religiosa e judiciária. Assim, ao preso são assegurados todos os direitos não afetados pela sentença penal condenatória e seus direitos só podem ser limitados nos casos previstos na própria Lei de Execução Penal, que prevê os casos em que os direitos dos presos podem sofrer limitação dentro do presídio. Como visto, mocinha, segundo a boniteza ordinária da lei, os presos teriam, portanto, assegurado tanto pela Constituição Federal, quanto pela Lei de Execução Penal seu direito à vida, à dignidade, à liberdade, à privacidade etcetera e etcetera e tal, mas o que se vê é esse absurdo todo, pois lá dentro só existe uma lei que prevaleça: a do desamparo, do sofrimento, da dor”.

Depois da explanação, Carmen viu a mocinha tristonhamente olhar para cima e, como se estivesse prendendo algo por dentro, perguntar: “Então é essa lei, a do presídio, que está sendo aplicada ao meu irmão, não é?”.

Carmen não tinha o que responder.

continua...

Poeta e cronista

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