NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 49

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 49

Rangel Alves da Costa*

Depois de uns dez minutos se despediram forçadamente de Paulo. Este queria de todo jeito que a irmã ficasse ali ao seu lado para que todas as noites adormecesse no seu colo. Alegou que precisava sonhar um sonho bom e no chão onde dormia só apareciam pesadelos sempre acompanhados de ratos, baratas e outros bichos.

Se a irmã ficasse ali e estirasse as pernas pra ele deitar a cabeça, como sua mãe fazia quando ele era menorzinho, talvez sonhasse com uma porta se abrindo e um sol entrando pelo buraco da telha. Também queria sonhar sendo um cavalo alazão e correndo sem destino pelos descampados, sendo uma pedra bem grande que chora de alegria em cima de uma montanha porque a idade vai lhe transformar em pó e depois o vento vai chegar e levar por aí.

Tudo sonho de liberdade. Não dizia, não sabia explicar, mas não meros devaneios e muito mais a ânsia de libertação lhe aguçando mentalmente, naquela fresta onde o pensamento ainda assegurava ao menos sonhar com a liberdade. Assim, com tais coisas era o que mais queria sonhar na vida, disse enquanto era abraçado e beijado. Carmen se continha à força para também não se desmanchar em lágrimas.

Acenou enquanto saía acompanhando pelo agente prisional, não olhou mais pra trás e nem falou mais nada. Pela porta aberta, sendo levado pelo corredor sem ter as mãos algemadas, a irmã continuava olhando e chorando, avistando naquele irmão outro familiar que certamente perderia, avistando ali um resto de gente que plenamente caracterizava o que pode fazer um ato de injustiça, protagonizado pela própria justiça e por pessoas que deveriam ser responsáveis por fazer justiça.

Seguindo pelo corredor até ser jogado novamente no lixão, no monturo, na putrefata masmorra, ouviu o acompanhante lhe falar mas não respondeu. Ouviu-o perguntar se gostava da irmã e não disse nada. Quando quis disse apenas que o palácio real tinha sido invadido e para se salvar o rei se transformou na rainha e casou com o invasor para se manter no poder. E sorriu depois, até gargalhou. E foi a última vez que sorriu, foi a última gargalhada que deu. Nunca mais viram ou o avistaram sorrindo. Nem maluquices ou coisas desconexas falou mais. Aliás, depois dessa visita ficou ainda mais quieto, calado, mais distante de tudo.

Descobririam mais tarde que ele ficava em silêncio absoluto na presença de outros presidiários, agentes penitenciários e pessoas da direção. Por mais que puxassem assuntos, por mais que o ameaçassem e até praticassem violência física, continuava indiferente, impassível, emudecido, como se estivesse em outro mundo completamente diferente. Mas se olhavam pelos buracos ou de local onde ele não percebesse, então o encontrariam num incessante diálogo com o desconhecido, falando sozinho, ora indagando, ora refutando o que dizia.

Do mesmo modo, depois do encontro com a irmã e Carmen decidiu diminuir muito a alimentação já escassa que recebia. Praticamente rejeitava tudo que lhe era oferecido, não queria mais comer quase nada. Rejeitava o café, o feijão e o arroz estragados e toda iguaria nojenta que chegava ali. No café ficava apenas com o pão mofado e durante o dia inteiro continuava com ele sendo lambido. O pedaço de mortadela não, pois parecia que gostava e jogava tudo na boca de uma vez, engolindo talvez sem mastigar.

Mas passou a ter outros hábitos alimentares repugnantes, tristes só de se imaginar. Eis que passou a experimentar e até comer os restos de comida que encontrava pelo chão, cascas de banana e todo amolecido que fosse catando pelos muitos lixões que se espalhavam por todos os lugares. Ele mesmo era um lixo ali, como todos os demais. Restos jogados e espalhados no lixo e restos de pessoas vivendo dentro do lixo e sendo o próprio excremento, o próprio dejeto.

Muitas vezes, se avistados na proporção do tamanho, não haveria como se distinguir homens de ratos, homens de baratas, homens de restos de homens. Ali, os bichos que rastejavam pelos corredores e arredores fétidos cumprindo seus destinos de animais agiam com muito mais razão do que os próprios humanos, vez que uns se alimentando daquela vida de imundícies, enquanto outros se tornando bichos imprestáveis pelas circunstâncias e pelo desejo de outros homens. Será que também humanos?

É de Manoel Bandeira um poema, intitulado “O Bicho”, que serve para exemplificar, ainda que diferentemente dessa realidade bem mais dolorosa, essa abominável condição humana. Diz o poeta:

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Muitas vezes não havia como delimitar onde estava o bicho e onde estava o homem, o inseto e o indivíduo, a praga e o ser, o rastejante e o andante. Todos nas mesmas masmorras medievais, em ambientes doentios, frios ou quentes demais, sem iluminação ou ventilação, sem qualquer estrutura higiênica e tendo espalhadas por todos os cantos os focos de todos os tipos de doenças, principalmente de pele e das vias respiratórias.

Ora, os insetos ruins, os fungos apavorantes, as pragas infectantes, os bichos contaminados, os animais doentios se reproduzem em ambientes fechados, nojentos, insalubres, molhados, mofados, sujos, asquerosos. E eram exatamente nesses ambientes onde estavam os presidiários, os apenados, reclusos, misturados nesses focos e expostos ao surgimento de todas as mazelas físicas e mentais possíveis. E ainda não era uma penitenciária para acolher os definitivamente sentenciados, mas apenas um presídio de passagem.

Tinha que ser amigo do rato, pois ali também era o seu habitat; tinha de suportar as pulgas pelo corpo e cabelos, pois local propício para estarem ali; tinha de ver surgir pelo corpo os manchões, as feridas, as coceiras, as sarnas, as infecções, pois tudo ocasionados pelos bichos que se infestavam por todo lugar. Talvez não pudessem nem reclamar, pois claramente ali era domínio dos bichos e não dos homens. Quando foram jogados naqueles ambientes os seus moradores já habitavam há muito tempo.

E talvez por isso mesmo que agindo sobre o homem, infectando-o, fazendo surgir mazelas até incuráveis, os bichos tentavam expulsar os homens do seu mundo. Como não conseguiam, pois a cada dia surgiam mais e mais indivíduos, então socializaram os ambientes, compartilharam as doenças e as imundícies, passaram a conviver pacificamente com os detentos, ora dentro, ora por cima do corpo ou nos arredores. E era por isso que se misturavam, num convívio só, tanto bicho e quase bicho.

Assim estava Paulo, meio homem, quase bicho. E bicho doentio, homem enlouquecido talvez pela vida de bicho.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

blograngel-sertao.blogspot.com