NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 44

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 44

Rangel Alves da Costa*

Na concepção de Carmen, ainda bem que naquela fase final do curso não estava mais precisando freqüentar a universidade diariamente. Aulas propriamente ditas, em sala de aula, praticamente não existiam mais. Quando muito se dirigia até lá para entregar relatórios de estágio e prática forense e tomar ciência das novidades junto à comissão de formatura. Somente isso. Ainda bem mesmo, porque não conseguiria acompanhar quase nada diante dos últimos transtornos.

Tinha prometido a si mesma evitar falar com o Dr. Auto o quanto pudesse. Já conhecia o caráter dele e, até evitando falar demais sobre o que já sabia e o que estava procurando saber, quanto mais distanciamento melhor. Ademais, evitaria confundir aquilo que já tinha conhecimento ou certeza, vez que ele sempre negava os fatos e procurava sobrepor suas versões esmeradas demais. Era preciso muito cuidado com a lábia adocicada do homem, sua verve para enganação.

Mas naquela tarde não havia jeito mesmo. Ou telefonava para o cafajeste ou explodia, ou falava com ele ou corria o risco de ter um troço, um problema de saúde qualquer. Ao ouvir o telefone tocar e não reconhecer aquele número certamente que atenderia com a maior destreza e prazer. Era próprio dele tratar os desconhecidos com a maior gentileza do mundo. Depois viria o bote certeiro. Assim, sem saber quem estava do outro lado da linha nem o que tencionava lhe dizer, atendeu com a maior fineza possível:

“Pois não, advogado Auto Valente à sua disposição. Quem fala, por favor?...”. Ao ouvir o nome e reconhecer a voz gelou, degelou, congelou novamente. Suou frio, fez brotar no rosto uma cor de fogo em chamas, viu o sangue correr feito lava e sua língua pesar mil toneladas para continuar falando. O problema é que amava aquela mulher, vivia completamente apaixonado, numa dor incontida que se tornava ainda maior porque não podia revelar a ninguém, e talvez muito menos a ela. Por isso mesmo não desligou o telefone nesse momento. Ah! esperança, o quanto não fazem em teu nome esperança! E quem saberia dizer o que merece ser feito pelo amor!

Contudo, logo diante da primeira pergunta que ouviu a esperança se tornou em desalento e o medo fervilhou com ferocidade. Ora, quem vive no erro sempre espera o pior, não há como não temer quando aquele que conhece suas falhas e deslizes começa a abrir a boca. E o corpo começa a dilacerar temendo o que virá pela frente: Será, será, será?! E Carmen realmente foi logo ao ponto na primeira indagação que fez:

“Pelo que andei sabendo e foi a própria que me falou, estava marcado para Dona Glorita retornar aí ontem pela manhã. Ela esteve aí, Dr. Auto?”. E o outro respondeu, com a voz embargada de nervosismo, acrescendo-se o esforço para mentir convincentemente: “Realmente, estava realmente marcado para a boa mulher comparecer ontem aqui no meu escritório. Mas não sei por que ela não veio. Esperei aqui o tempo todo e ela não veio. Será que aconteceu alguma coisa? Estará doente a mãe de Paulo, a nossa boa amiga?”.

Do outro lado, Carmen ouvia isso porque era o jeito, porque tinha que continuar fustigando para ver se saía alguma verdade de lá. De pronto, já sabia que o advogado estava descaradamente mentindo, pois não tinha mais dúvidas que o acidente, àquela hora acima do meio dia, só podia ter ocorrido quando ela havia saído de lá. Ademais, já passando da hora do escritório fechar para o almoço, logicamente que a mesma não iria fazer mais nada ali. Mas continuou, procurando responder ironicamente:

“Não sei, mas talvez esteja muito doente, muitíssimo doente, correndo até risco de morrer. Não sei, juro que não sei, principalmente porque não sou espírita”. Não o deixou pretender insinuar nada sobre isso e procurou ser rápida, jogando mais um questionamento: “A sua nova secretária não viu Dona Glorita por aí, não a recebeu e nem lhe passou alguma informação?”.

E ouviu outra deslavada resposta: “Lembrou-me bem Carmen, lembrou-me muito bem. Tenho que falar com o deputado para tomar providências. Não é que a moça resolveu faltar ontem pela manhã e nem me telefonou para dizer que não estaria no escritório? Isso não pode acontecer de jeito nenhum. Tive que ficar pregado aqui por causa dela, daquela faltosa...”.

Nessa resposta, ainda que inventiva, restou alguma coisa boa aos seus ouvidos, pois já sabia que deveria procurar a mocinha para obter algumas informações importantes. Do mesmo modo ficou sabendo onde encontrar o número do telefone dela mais facilmente, que era no próprio gabinete do Deputado Serapião Procópio. Contudo, resolveu não dar mais volteios e foi logo perguntando:

“Dr. Auto, já que o senhor estava ontem aí no escritório pela manhã e só deve ter saído na hora do almoço, por acaso não viu e nem soube de algum acidente ocorrido na rua do escritório, bem em frente ao prédio, precisamente logo após o meio dia?”.

O mundo desabou, tudo caiu, ruiu. Diante da pergunta o advogado se procurava e não se encontrava mais, havia sumido, desabado nas profundezas do chão, havia submergido na lama, havia explodido e desaparecido. E talvez fosse melhor assim, para não ter de suportar aquela punhalada cortante na voz. O mais grave é que não sabia fazer mais nada, estava sem ação, sem imaginar o que responder. E eis que o estridente vermelho lhe agulhou e um bafo fétido lhe soprou ao ouvido. E surgiu a resposta:

“Acidente? Houve algum acidente por aqui ontem? Ainda bem que não saí para almoçar e fiquei aqui mesmo até a tarde adiantando umas petições. Mas é verdade é que houve mesmo acidente por aqui? Juro por tudo na vida que estou sabendo disso agora. Quando eu saí não percebi nada de estranho, nada que pudesse ao menos sinalizar ter ocorrido um acidente bem em frente ao escritório. E foi grave, teve vítimas?”.

E Carmen não suportava mais, mas procurou se conter: “Teve sim. Foi violenta e impiedosamente vitimada uma cliente sua. Um veículo quase estraçalha completamente o corpo dela. Dona Glorita morreu bem aí em frente ao prédio, assim que saiu do seu escritório, quando ia atravessando a rua. Está lembrado agora ou você, seu verme asqueroso, seu nojento, safado mentiroso, filho de uma égua, covarde, corrupto e assassino, terá coragem de me dizer que não sabe nada disso?”.

E o outro não falou mais, não respondeu mais nada. Se fez completo silêncio. Em seguida o telefone foi desligado. Ou desligou-se por si mesmo, numa dessas estranhezas da vida.

continua...

Poeta e cronista

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